sexta-feira, 4 de outubro de 2013

VALE A PENA VER DE NOVO


ALÉM DOS LIMITES DE UM AMOR FRONTEIRIÇO


Talvez algum transeunte do LiteralMente blog vá se indagar por que este presente texto ressuscita um filme de 1986. De início gostaria de deixar claro que nem sempre o que é novo, contemporâneo ou atual seja sinônimo de qualidade e pertinência, pois se assim fosse o que seria dos clássicos. Aliás, vejam, por exemplo, um livro acadêmico recente. O que temos em suas referências bibliográficas? Os clássicos, ora. O que é mesmo bom, profundo e belo não fica datado nem cria mofos e traças. Tem coisas novas que já nascem com bafios e ranços, isto é, já nascem velhas, descartáveis e obsoletas.
                Preâmbulos à parte, vamos falar do que nos prontificamos falar: da passionalidade amorosa que pode nos arrastar ao abismo. O filme a que fiz menção tornou-se um fenômeno cult nos anos 80 e foi baseado num romance de Philippe Dijan de mesmo nome, ou seja, “Betty Blue”. O filme dirigido por Jean-Jaques Beinex conta a história de um jovem pacato zelador chamado Zorg que, em suas horas vagas, busca realizar seu grande sonho que é a de vir se tornar um escritor. Em meio a sua vidinha pacata e um tanto monótona surge a estonteante Betty por quem Zorg inevitavelmente se apaixona e por ela é correspondido.
                Betty é uma linda mulher de temperamento instável e inconstante, com fortes inclinações de humor explosivo. A relação entre ambos logo se torna um tórrido relacionamento de afetos intensos. Em sua volatilidade afetiva Betty oscila bruscamente entre o carinho e a agressividade, e Zorg é gradualmente compelido e atraído por aquele vulcão indomável de emoções cuja força catalizadora e dominante, em meio ao furor de seus arroubos destrutivos, por sua vez, impulsionam Zorg a realização de seu sonho de publicar livros e ser escritor. 
          Viver a montanha russa de sentimentos que uma mulher como Betty proporciona é de início, excitante e empolgante, afinal o cotidiano morno e insosso de Zorg sofre toda uma transformação. Ao invés da segurança retilínea e morgada com que antes conduzia sua vida (ou será que era a vida que o conduzia?) tem-se agora a variabilidade aventureira de um relacionamento afetivo-sexual energético e intenso. Se a vidinha de Zorg era de cor bege, transformou-se em vermelho quente. Todavia toda essa intensidade tem um preço, pois ela é calcada numa intensidade frouxa e exaustiva. O incêndio que a paixão proporciona incendeia não somente os corações e mentes dos amantes, mas também tudo ao redor. Aqui a expressão de Marx toma outro sentido: “tudo que é sólido se desmancha no ar”.
                Betty é inquieta e densa emocionalmente. Nada parece saciar sua fome ou preencher seus vazios crônicos. A evolução do seu amor mais do que intenso excessivo e explosivo na verdade acompanha o próprio enlouquecer da personagem. O descontrole intermitente transforma-se em uma instabilidade contínua e avassaladora. A enxurrada de sentimentos e emoções que antes deram o tom de inconformismo frente a uma maneira de existir medíocre converte-se em uma irreversível insustentabilidade frente à própria vida. O sonho dulcorizado da idealização romântica metamorfoseia-se no pesadelo sufocante da loucura.
    Um leitor minimante atento já haveria de perceber que a personagem de Betty, embora impressionante e efusiva, transpirava em seus comportamentos, contradições e condutas, o que conhecemos como “Personalidade Borderline”. A instabilidade, toda a intensidade, a disforia e o humor frequentemente reativo, conjugada a impulsividade, a inquietação interminável, e acentuada irritabilidade e agressividade, bem como comportamentos ameaçadoramente de risco, descrevem com nitidez um Transtorno de Personalidade Borderline. A atratividade empolgante que a maneira de ser de Betty suscita oculta uma Medéia onde Zorg gradualmente se enreda para mais adiante se ver dentro de um olho de furacão.
                A personalidade Borderline tem como caraterística marcante a forma descompensada como estabelece seus laços afetivos. Seu estilo repentino e impulsivo, seu saltear brusco de humor e a maneira massiva e afluente com que investe em seu objeto amoroso, inevitavelmente resultará no comprometimento da própria relação amorosa. São pessoas cuja personalidade se fundou numa enorme e insaciável necessidade de ser amado, e por mais amado que seja encontra-se constantemente inseguro e insatisfeito. Sentimentos de rejeição, solidão e depressão são panos de fundo de uma personalidade afetivamente oscilante, emocionalmente ambígua e facilmente irritável. A vivência de amor Borderline é bastante passional, veemente e exaurível. Paixão, ciúme, obsessão, necessidade de aceitação e incondicionalidade amorosa, dependência, entre outros, permeiam a paixão que se transforma em uma espécie distorcida de amor.
  Se muitas das relações amorosas estáveis começaram em nome de uma passageira paixão, um amor patologicamente fronteiriço inicia-se no fulminar ardente e entusiasmante da paixão, porém dela não consegue sair ou amadurecer. Parece uma relação fadada ao aprisionamento das endorfinas, mormente a adrenalina. Este intenso laço afetivo tem um termo para dele se falar, embora não o utilizemos comumente, que se chama limerence ou limerância. A limerância é quando a paixão vicia. É o extremo da própria paixão.
  A oferta de um amor aventureiro e eternamente jovem fascina e encanta. É como entrar num carrossel de sensações intermináveis. Porém, assim como a delícia de um orgasmo sexual que tanto nos dá prazer duram poucos e rápidos segundos, caso o mesmo se perpetuasse por minutos, horas ou dias, sucumbiríamos à falência do organismo que não aguentaria suportar o excesso contínuo de gozo. Por que então haveria de ser tão diferente assim com nossas emoções e sentimentos? O cumular excessivo e sem intermitências só pode nos extravasar como um copo cheio d’água.
Inicialmente muitas vezes atraentes, chamativos, fascinantes e interessantes, por detrás dessa fachada provocativa e convidativa esconde-se latente uma intimidade sofrida de uma quase loucura cuja fronteira é tão perto e tão tênue que um passo a mais é puro abismo sem volta. A instabilidade visível na expressividade emotiva revela uma auto-identidade inconsistente e muitas vezes dependente, masoquista e manipuladora. A exuberância oscilatória e lábil das emoções torna uma pessoa que sofre de transtorno de personalidade Borderline um verdadeiro “hemorrágico mental”.
Se o caro leitor (a) está interessado em arriscar estabelecer uma relação amorosa de fortes emoções (se quer ter muitas histórias pra contar a seus futuros netos) e está a fim de se surpreender e viver um romance cheio de imprevisibilidades e reviravoltas fique à vontade, afinal estima-se que 2% da população geral apresente quadro clínico compatível com a classificação F60.31 do CID-10. Se você quer sair da calmaria entediante de sua vidinha insossa e realizar seu sonho cinematográfico, ou se você quer alvoroço, agitação, susto e dramaticidade, então é só comprar a passagem e boa viagem. Só não esqueça que o piloto avisa que pela frente haverá muitas e fortes turbulências e que há sérios riscos do avião cair. Good Luck...

Originariamente publicado em 12/08/2012

Joaquim Cesário de Mello

2 comentários:

Alice disse...

Por que tudo tem que ser vermelho? gosto tanto do beje. Por que tudo que é rotineiro é chamado de medíocre? quente, fogo, paixão... morno, ensosso, beje, sem graça... vida pacata, vida morna, vida que se delicia em si mesma, sem necessidade de mudar de cor, mas ainda assim vida.

literalMENTE disse...

Pois é, Alice, o bege também é uma cor muito bonita e que combina com tantas várias outras cores. Aliás o bege é uma tonalidade que tem proximidades com o branco e o amarelo. Eu, particularmente gosto de tomar banho morno, já num gosto de cerveja morna. Se nem tudo é bege, também nem tudo é vermelho ou amarelo ou laranja. A vida é colorida, assim como também pode se usufruir dos instantes pacatos e serenos. Talvez o importante não seja a cor em si, mas como nos relacionamos com ela, isto é, com tranquilidade ou intranquilidade. Prefiro a tranquilidade da maresia de uma beira-mar do que a adrenalina de uma motanha-russa.