domingo, 20 de outubro de 2013

A vida é um livro aberto

:

Acredito que muitos dos leitores do LiteralMENTE estão acompanhando ou pelo menos tendo algum conhecimento da discussão em torno das biografias autorizadas ou não  autorizadas. Dou destaque a esse tema aqui no blog por dois motivos. O primeiro: sendo esse blog um espaço de literatura  - e a biografia é uma de suas modalidades -  devemos, de algum modo, provocar  discussões e, segundo, para o profissional “psi” a palavra biografia desperta particular interesses - trabalhamos com biografias anônimas e contingentes.

Para quem não sabe da polêmica, a discussão se desdobrou num impasse,  se as publicações de biografias de “famosos” e celebridades deveriam  ser ou não autorizadas antes da publicação pelos biografados. Num primeiro momento temos a tendência em responder pela autorização prévia, para evitar excessos, exageros ou inverdades - que eventualmente podem ocorrer -, mas essas autorizações vem tomando proporções tão burocráticas e dissonantes  que o resultado de todo esse aparato em defesa da privacidade do biografado, faz da biografia menos biografia e do texto, quando autorizado,  apenas uma saudação as boas realizações do sujeito. Essas homenagens são benvidas e devem, quando presentes, serem destacadas. Há, contudo, em algumas biografias a relevância  histórica que não necessariamente vai destacar os grandes feitos de uma determinada pessoa - afinal, não só de boas intenções se constroem os sujeitos, ou pelo menos alguns sujeitos.

Assim como existem biografias de artistas, escritores, poetas e filantrópicos, existem as biografias de tiranos, ditadores, opressores que são igualmente importantes para uma compreensão de  momentos sociais e de determinadas épocas. Imaginar que teríamos que pedir autorização dos familiares de Benito Mussolini, Franco ou de Hitler, para publicar suas biografias, Seria uma insensatez, pois naturalmente, essa autorização jamais seria permitida - salvo para aqueles que  querem tirar algum dividendo do tirano da família, literalmente "salvador da pátria". Esse último item, por sinal , vem sendo um dos temas mais discutidos da polêmica, para os defensores da prévia autorização. Nesse rol de discussões cabe algumas considerações sobre  o sentido da biografia.

Se uma pessoa vem e nos diz: vou contar minha vida, pois ela é um livro aberto, devemos estar atento se o que vai ser falado pode ser levado à sério. Somos orientados por educação a dizer a verdade, a falar com franqueza, mas de algum modo, na nossa economia psíquica tendemos a valorizar apenas a parte de nossa vida que nos dá cartaz. Essa parte é apenas um pedaço, um pequeno pedaço. Além do mas, a maior parte de nossa vida são partes e fragmentos de sentimentos e ideias que desconhecemos. A esse desconhecido chamamos de inconsciente. De um livro aberto só conseguimos compartilhar  apenas duas páginas. Essas duas páginas são o nosso cartão de visita, alguns sucessos, pequenos fracassos. O objetivo do biógrafo é justamente provocar uma ventania  e virar mais algumas páginas desse interminável livro. Cabe lembrar, contudo, que antes, esse livro estava em destaque, no centro das atenções, em cima do palco e necessariamente iria despertar interesses para que se soubesse mais dele. Digamos que a pessoa que quis ser celebridade, nos disse que a sua vida era  um livro aberto, e permitiu que mais algumas páginas fossem reviradas, justamente naqueles dias em que precisava se fazer conhecido. Enfim,  o mesmo sujeito que agora reclama em ter sua vida vasculhada, em outra ocasião quis fazê-la obstinada e exageradamente pública e muitos desses exageros expos sua privacidade de maneira inadequada. A manutenção da privacidade depende na maioria das vezes do próprio sujeito e das características de sua personalidade. Observar um vizinho pela janela, por exemplo, é uma invasão de privacidade, mas apesar de sórdido não configura crime. Todos sabemos que deixarmos as janelas descortinadas corremos esse risco.
O que parece que está em jogo no mundo das celebridades é justamente a ambivalência entre o desejo de se destacar e se expor e o desejo de manter privacidade. Hoje não se faz necessário ser detetive ou biógrafo investigador para saber fatos da vida das pessoas. Basta acessar as redes sociais que se verá muita gente se expondo, na maioria das vezes, ingenuamente. E nessas "publicações", muito erros, que na ocasião não eram julgados como erros, vem a público.
Muitos erros fazem história. Millôr Fernandes disse que viver é desenhar sem borracha. De algum modo, tenta-se corrigir os erros passados, mas eles estão ali, mesmo que disfarçados.  Há situações que esses erros são impossíveis de serem encobertos, são ruidosos. Obstruir essas verdades seria um ato ingênuo. O máximo que poderia acontecer seria um tamponamento temporariamente. o que sobraria seria um boato ou outro.

Marcos Creder

Nenhum comentário: