domingo, 10 de fevereiro de 2013

NOS LIMITES COM O DIVINO

à minha companheira Rose que me fez sentir na pele o valor de ser perdoado



  Se você for a uma Wikipédia da vida lá encontrará a seguinte definição para o termo perdão: “é um processo mental ou espiritual de cessar o sentimento de ressentimento ou raiva contra uma pessoa ou contra si mesmo, decorrente de uma ofensa percebida, diferenças, erros ou fracassos, ou cessar a exigência de castigo ou restituição”.
                Perdoar parece ter uma íntima e estreita relação com outro processo mental que é o esquecimento. Todavia não me parece que seja um esquecer cognitivo, mas sim um esquecer afetivo com vistas a resgatar ou se reconciliar com alguém ou consigo mesmo. Revendo a definição acima observa-se que a pré-condição para que haja o perdão é o não guardar rancores ou ressentimentos no interior da alma de quem perdoa. Mágoa, ressentimento e rancor, são sentimentos conservantes, isto é, que conservam a raiva e o ódio. Neste sentido perdoar é um ato saudável, pois nos livra da acidez dos afetos agressivos conservados na alma e no corpo.
                Perdoar é, talvez, o ato mental mais sublime da raça humana. É quando fronteiramos o humano com o divino. Não é a toa que o perdão está na base de quase toda religião. No Cristianismo, então, nem se fala, ou melhor, se fala muito. Em Mateus, VI: 14-15, por exemplo, temos: "Se perdoardes aos homens as ofensas que vos fazem, também vosso Pai celestial vos perdoará os vossos pecados. Mas se não perdoardes aos homens, tampouco vosso Pai vos perdoará os vossos pecados".
                Psicologicamente somos seres emocionais e emotivos, e por isto sentimos o impacto de uma agressão ou ofensa. O impacto é um instante, mas nossas emoções perpetuam o instante por mais tempo, às vezes por muito tempo. A ofensa nos magoa e a mágoa preserva em nós os efeitos da ofensa. Fica evidente, pois, que para se perdoar há primeiro de se trabalhar e se esvaziar a mágoa. Quanto menos mágoa sentimos mais a ofensa perde seu significado. O esquecimento afetivo a que fizemos menção acima só acontece quando a lembrança da ofensa ocorrida encontra-se diluída da negatividade que ela nos proporcionou. E isto não é assim tão fácil, demanda tempo, elaboração psíquica e superação. É um lento e gradual processo de purificação da alma ou da mente.

    Perdoar, embora difícil à primeira vista, é um processo elaborativo psíquico necessário para o reequilíbrio interno, visto que a mágoa, a raiva e o ressentimento que a ofensa nos impregna são emoções de caráter corrosivo e destrutivo e que nos desorganizam por dentro. Quem não perdoa fica como que preso no passado, gastando energia com algo que foi da esfera do ontem. Esta energia, quando liberta pelo perdão, se oferece ao sujeito para ser usada em novas realizações do presente e do futuro.
          Perdoar é um ato de escolha onde o sujeito ofendido trabalha em si mesmo para não conservar a dor que um dia a ofensa lhe gerou. Afinal, o que seria da humanidade se o ser humano não trouxesse em si a capacidade de perdoar; de superar a dor e seguir em frente? Sem o perdão não haveria sequer sociedade, ou como escreveu Desmond Tutu: “o perdão é uma necessidade absoluta para a continuidade da existência humana”. Sem o perdão viveríamos acorrentados no passado e todas nossas relações interpessoais de dissolveriam, pois não existem relações de proximidade humana que aqui e acolá não gere algumas frustração ou alguma mágoa. Como também disse Martin Luther King, “o perdão é um catalizador que cria a ambiência para uma nova partida, para um reinício”. E não há reinícios sem renúncias, principalmente as de natureza punitivas e vingativas.




O perdão não perdoa o ato, mas sim a pessoa que praticou o ato. A absolvição que pode se fazer em relação à pessoa que praticou o ato ofensivo passa por compreender mais amplamente as razões de tal ato, que motivos levou ela a fazer isso ou aquilo e que participação, embora mínima, se possa ter para ter colaborado, mesmo que de maneira não deliberada, para que isso tenha ocorrido da maneira como ocorreu. Sei que não é tarefa fácil, afinal a pessoa ofendida está e se acha no lugar de vítima. Mas é preciso entender que as coisas não acontecem assim tão por acaso. E neste sentido e visão, perdoar o outro é igualmente um ato de autoperdão.

                Hanna Arendt, em seu livro A CONDIÇÃO HUMANA destaca que perdoar é acima de tudo se desobrigar de continuar em uma determinada posição, sem que isso signifique esquecimento. Escreve ela:
Se não fôssemos perdoados, eximidos das consequências daquilo que fizemos, a nossa capacidade de agir ficaria por assim dizer limitada a um único ato do qual jamais nos recuperaríamos; seríamos para sempre as vítimas das suas consequências, à semelhança do aprendiz de feiticeiro que não dispunha da fórmula mágica para desfazer o feitiço. Se não nos obrigássemos a cumprir as nossas promessas não seríamos capazes de conservar a nossa identidade; estaríamos condenados a errar desamparados e desnorteados nas trevas do coração de cada homem, enredados nas suas contradições e equívocos - trevas que só a luz derramada na esfera pública pela presença de outros que confirmam a identidade entre o que promete e o que cumpre poderia dissipar. Ambas as faculdades, portanto, dependem da pluralidade; na solidão e no isolamento, o perdão e a promessa não chegam a ter realidade: são no máximo um papel que a pessoa encena para si mesma”.
       Creio que neste momento em que nos aproximamos do fim do texto não haja dúvida de que perdoar é renunciar punir e desobrigar o outro da culpa. Mas creio também que igualmente ficou claro que de fato perdoar é nos libertar através da doação. Sim, leitor, doação. Etimologicamente perdão vem do latim perdonare, onde per significa “através de” e donare o “ato de se doar”. E o que doa quem perdoa? Doa o que tem de mais grandioso e sublime no ser humano que são a tolerância, a compreensão e a esperança. Por isto existe aquele ditado que diz “errar é humano, perdoar é divino”. Não, perdoar não é divino, mas é o que há de mais próximo do divino em nós. 
        Ou, ainda, como canta a poeta (Cecília Meireles):

"Se você errou, peça desculpas...

É difícil perdoar?
Mas quem disse que é fácil se arrepender?

Se você sente algo diga...

É difícil se abrir?
Mas quem disse que é fácil encontrar alguém que queira escutar?

Se alguém reclama de você, ouça...

É difícil ouvir certas coisas?
Mas quem disse que é fácil ouvir você?

Se alguém te ama, ame-o...

É difícil entregar-se?
Mas quem disse que é fácil ser feliz?

Nem tudo é fácil na vida...
Mas, com certeza, nada é impossível..."
Joaquim Cesário de Mello




Um comentário:

Alice disse...

Puxa vida, tocou na minha alma. Como é difícil perdoar de verdade. Como é difícil perdoar a si mesmo. é um processo realmente longo e muito difícil... Parabéns pela oferta do texto.