Há momentos no
cotidiano em que algumas palavras tendem a serem utilizadas como gírias e são assim banalizadas por conta de acontecimentos da atualidade.
Palavras como “sustentabilidade”, “inclusão”, “globalização”, “contemporaneidade”,
“expertise”, “customização” são termos que trazem temas de alguns problemas
vividos na atualidade e são rapidamente desviados das reuniões técnicas e
sociais às conversas de botequim. Isso é um acontecimento comum, que dá flexibilidade
a língua e dela se constroem novas metáforas do dia a dia – lembro-me da
presidente Dilma utilizar a expressão “Tsunami econômico” (há dez anos,
certamente, poucos teriam entendimento do que ela queria dizer).
Algo, contudo,
chama-me atenção na utilização dessas palavras em algumas áreas do conhecimento.
Muitas vezes, observo que alguns ditos, que diz respeito aos fenômenos psíquicos,
podem, por assim dizer, nessa banalização, criar alguns equívocos. Um exemplo
simples: há uns vinte anos, um quadro de transtorno psíquico em que havia fases
de euforia e fases de depressão era chamado entre os psiquiatras de Psicose
Maníaco-Depressiva. Hoje, em razão do tempo e das constantes mudanças nas
classificações psiquiátricas, cunhou-se um novo nome: Transtorno Bipolar do
humor. Interessante que no momento em que se muda de nome – um nome menos grave
e mais abrangente – o números de
acometidos parece ter aumentado. Vejo com freqüência alguém dizer que “tem um pouco
de bipolaridade”, ou que um amigo que
esteja “bipolar ou depressivo”. Dificilmente no passado se ouviria: “eu
tenho alguma coisa de psicótico maníaco-depressivo”.
Estar com pânico,
estressado ou com Alzheimer, ou ainda ter uma vida meio esquizofrênica, assim como ter
vários ex-namorados psicopatas, tornaram-se palavras doces do dia-a-dia. Até aí
nada de mal, enfim, são palavras que são introduzidas na comunidade e elas, por si só, criam suas ressignificações. Cabe
lembrar, contudo, que quando está se falando de transtorno psíquico seria
importante deixar as metáforas e as imprecisões de lado e se deter no conceito
clínico do evento. Vou citar um exemplo.
Há uma
tendência das pessoas procurarem profissionais para se tratarem de
Hiperatividade – a nova epidemia da atualidade. Na verdade, essas pessoas que nos
veem, muitas vezes, já tem em mãos um questionário preenchido e, não raro, já nos
solicita a prescrição de determinada medicação. Os argumentos que são simples: distraibilidade, desatenção, e dificuldade de concentração. Interessante que
poucos falam do nome principal: Hiperatividade. Hiperatividade, na verdade, é o
sobrenome de TDAH (Transtorno do Déficit da Atenção com Hiperatividade – um fenômeno
que clinicamente existente, mas que está sendo inflacionado por falsos diagnósticos).
Muitos desses clientes que se auto-diagnosticam
com esse transtorno estão passando por algum processo seletivo – vestibulares,
concursos públicos – ou, simplesmente, estão sendo obrigados a fazer trabalhos
que envolvam leituras ou reflexões de maior complexidade. Cabe destacar que
essas mesmas pessoas raramente ficam “desatentas” quando estão navegando na
internet ou assistindo a programas de televisão. O que fica claro é que a
dispersão reside, essencialmente, na falta de intimidade com a leitura.
Costumo dizer
que algumas funções psíquicas passam por reformulações a depender dos recursos
técnicos e das aspirações sociais do período histórico a que estão submetidas.
Enquanto que o raciocínio do passado era moroso como num jogo de xadrez,
atualmente os games tornam-se ávidos por vitórias/derrotas breves; enquanto, em
outra ocasião, se tinha uma vida mais contemplativa e muitas vezes reservada,
hoje se deseja aqueles cinco minutos de fama nos sites de relacionamento, com
milhares de frases descartáveis. A vida em rede aumentou a intolerância dos
apressados, intensificou o tédio para as leituras e diálogos mais extensos e essa
impaciência aumentou, inclusive, na audição de músicas ou melodias mais longas – fala-se pouco hoje em sinfonias, concertos de
blues e de Jazz, a expressão “in
concert” está cada vez mais rara.
Recentemente,
foi-me indicada a principal obra do escritor francês Marcel Proust (1871-1922)
: “Em Busca do Tempo Perdido”. Para se ter ideia, as edições variam entre
quatro e sete grossos volumes de minuciosa leitura. Tomei o primeiro volume e
vi que Proust escrevia contra todas as regras da redação que se ensina na vida
prática, insistia em construir textos com períodos longos, praticamente sem paragrafá-los, mantendo capítulos extensos e sem tomar cuidado com as palavras repetidas. Que
fiz, então? Li as primeiras cinqüenta páginas e refleti “acho que estou
hiperativo" (na verdade, “desatento”), minha leitura tendia a dispersão.
Terminei de ler o primeiro volume e indaguei: “maravilhoso...”. Nas primeiras cinqüenta páginas senti que
tinha pressa demais, uma pressa do século XXI, aquela aflição que hoje as
pessoas tem em chegar a última página de lugar nenhum. E daí por diante, entreguei-me ao um
diálogo com Proust, um diálogo longo, inteligente, sensível. A leitura do texto
seria semelhante a uma visita a um museu de quadros impressionistas em que seus posicionamentos perto/longe, frente/diagonal mostram o estado de espírito e as nuances
de uma conversa agradável.
Quando
recomendo esse texto, as pessoas rebatem, “Não tenho tempo”, “A vida de hoje
não dispõe de tempo para esse tipo de leitura”. Cabe lembrar que até na ocasião
do lançamento do livro, Proust advertiu que tecia um grande tapete num momento
em que as moradias estavam ficando pequenas. Imagine-se, então, um jovem
imprensado pelo mundo das informações breves, encontrar nesse espaço limitado,
esse extenso tapete? O que há, enfim, nesse
tapete? Letras que formam palavras, que formam frases, que formam texto, que
fazem livros. Enfim, estamos muitos desatentos (dispersos) para leituras.
Marcos Creder
3 comentários:
Muito interessante. Colocou-me diante de alguns questionamentos. Reconheço-me nessa geração apressada que preza a quantidade e velocidade mais do que qualidade e reflexão.
Pois a velocidade me atropela.
Na verdade eu que atropelo a lentidão...
É triste. Estou acostumado a muita informação entrando no cérebro vindo de diversas fontes diferentes. São duzias de abas abertas no meu navegador, ao mesmo tempo. Onde vejo um video de humor, enquanto leio um artigo do wikipedia, visitando uma galeria online de fotografias enquanto converso com cinco pessoas, escuto musica e faço upload de fotos, que eu estava editando agora a pouco.
É difícil se estabilizar em uma atividade monótona, "de um tom único; uniforme, sem variação."
Meu maior problema em ler um livro é que a pagina esta demorando pra virar. Juro a você... Fico lendo, olhando pro fim da pagina. Paro de ler pra ver se falta muito pro próximo capitulo. Isso vai me angustiando e acabo parando de ler antes do que poderia, se não tivesse me preocupando com isso.
É preciso esforço pra me desligar da conectividade, dos vários focos de informação. Mas as vezes eu consigo. Quando escrevo, quando toco, ou quando escuto música. Se bem que música é muito dinâmica.
Mas vou lá que tem muita coisa piscando aqui no meu navegador!
Este texto me lembrou do meu dentista! Ele conta que em casa não consegue ficar parado. Liga a TV, o computador, o rádio tudo ao mesmo tempo. E o pior se perde tanto do tempo com coisas banais. 90% das revistas são pura inutilidade, mentira, assuntos supérfluos. Frases ditas nas redes sociais, são apenas frases, é preciso conhecer o autor, o conteúdo, para entendê-la e digeri-la. Até uns meses atrás vi nas páginas do facebook e dos blogs de livraria e literatura, uma discussão sobre a autenticidade das frases de Clarice Lispector que corriam nas redes sociais! Caramba! Quem a leu sabe se pertence a ela ou não! Deixem as mentes maldosas afundarem entre si! Leiam Clarice, e não suas frases! Mas se quiser compartilhá-las não há problema! Pe. Léo (já falecido) diz no seu livro Jovens Sarados, que o ser humano, o jovem, está buscando cada vez mais o imediatismo, ou seja, falta o aprofundamento. Este imediatismo causa impaciência. Isto me fez lembrar dois livros. Com duas situações diferentes. Direi a segunda. Peguei um livro emprestado com uma amiga. Um livro sobre fatos reais. Foi num Domingo à noite. Na segunda pela manhã tinha aula de natação. Pois comecei a ler o livro até a chegada do sono e após a aula de natação, de roupão, com o maior molhado, sentei-me no banquinho e fui até o fim. Cada página eu queria mais e mais. Quando dei por mim já havia passado algumas horas. Acabei o livro. Voltei para casa. Comprei um para mim. E mais 10 para distribuir entre os amigos. Um doei a biblioteca da minha universidade. Onde foi aceito. Onde só tem um exemplar!
Cristiane
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