domingo, 22 de abril de 2012

PEQUENAS PERVERSÕES DE UMA VIDA MIÚDA


Como estou já algum tempo envolvido na elaboração do meu próximo livro, cujo título é “As Raízes da Felicidade: um estudo sobre o psiquismo humano”, não poderia deixar de rever um filme que marcou minhas retinas e minha alma. Trata-se do filme “Felicidade” (Happiness) do inquieto diretor do cinema independente americano Todd Solondz. Conhecido por seu estilo sarcástico e, principalmente, por suas críticas à classe média americana, há em sua obra um misto de comicidade e drama. Parece que nada lhe escapa ao modo de vida suburbano ou a pequena burguesia ascendente.
            “Felicidade” retrata um apanhado grupo de pessoas interligadas aqui e ali por laços de parentesco ou laços sociais. Todos vagueiam pela existência como que atordoados, tristes e desesperados. Há a femme fatale que embora devore homens a torto e a direito continua insatisfeita. Há aquela também que vive a cata do homem certo e a que é casada com um psicólogo atraído por garotos púberes. Há ainda, entre outros, aquele cara suado e bufante que tem dificuldade em relações com as mulheres e que, por isso mesmo, procura satisfazer-se por meio de telefonemas obscenos com mulheres desconhecidas. Ao invadirmos a privacidade e a intimidade perversa e miúda dos personagens somos levados a sentir pena deles, assim como podemos sentir pena dos vizinhos, caso não olhemos pro nosso próprio umbigo.
            Cruel e contundente, irônico e cínico, o filme nos leva a acompanhar seus fracassados afetivos na busca obstinada pela felicidade. Masturbações, taras, pedofilias e sem-vergonhices à parte, o filme é cru, raivoso e melancólico com a coitada da nossa condição humana. É o tipo do filme que nos deixa com aquele gosto estranho e amargo na boca. E por que, então, o cito aqui? Por ser uma estonteante e vertiginosa aula sobre as entranhas do comportamento humano. Filmaço, porém não para quem tem intestinos fracos ou acredite no “bom selvagem” de Rousseau.
            A matéria bruta de que somos inicialmente feitos é a natureza e os instintos. Hobbes dizia que “somos o lobo do homem”, enquanto Freud referia que a criança é “um perverso polimorfo”. Seja qual seja a forma de expressarmos nossas origens primitivas lembremos que, assim como ninguém nasce vestido, o psiquismo humano também não. Para nos tornarmos humanos conjugaremos nossa raiz animal com cultura, e se antes éramos tão somente um feixe de instintos e reflexos nos tornamos igualmente um ser de moral e sociabilidades.
            Do nosso berço biológico herdamos nossa inaugural animalidade, enquanto do nosso berço psicossocial herdamos a cultura e os seus interditos. Humanizados somos, assim, um eterno conflito entre desejo e moral, entre o instinto e a sociedade, entre o bestiali e o ethos, entre o Id e o Superego. Quem, por exemplo, comete um crime brutal e hediondo não é um monstro, mas sim um ser humano em que lhe falha as defesas e os interditos. Um ser humano em que, ao perder as principais características que lhe qualifica de humano que são a solidariedade, a empatia e a compaixão, retorna a sua mais pura barbárie primitiva e canibalesca.
            Um filme como “Felicidade” não navega apenas pelos corredores subterrâneos da alma humana, mas também busca investigar o que é isso que o ser humano tanto procura e que chamamos de felicidade. Alguém já disse – creio que Tchekcov – que a felicidade não existe e que não somos felizes, apenas podemos desejá-la. Claro que o arquétipo de felicidade é uma miragem e lá chegando a mesma se dissolve como uma enganosa fumacenta ilusão. Entretanto, talvez, a felicidade possível seja algo mais ou menos parecido como escreveu Érico Veríssimo, ou seja, “felicidade é a certeza de que a nossa vida não está passando inutilmente”.
            Não é o que acontece com os personagens engendrados por Solondz em seu filme. Eles parecem viver à beira de um abismo, vivendo suas vidinhas monótonas e tediosas como andarilhos estonteados e perdidos. Todos, embora não se percebam, estão como que condenados à infelicidade. A infelicidade de uma vida marcada pela pequenez e pela apatia. Vidas sem sentido. Vidas à margem da própria vida.
            Quem é feliz? - pergunta-nos o diretor com a acidez de seu filme. Aliás, como ser felizes na superficialidade da existência e da convivência social. Será que os personagens (e nós neles espelhados) são culpados pelo que fazem ou só fazem o que fazem por serem vítimas? Há certa incomunicabilidade entre eles, como se cada um, a seu modo e maneira, fosse omisso com os demais seres humanos. Faltam-lhes caritas e carecem eles de um mínimo de bondade com o alheio. Como se pode ser, portanto, verdadeiramente feliz vivendo vidas voltadas unicamente aos umbigos e problemas íntimos e pessoais, feitos hipocondríacos a perscrutar seus interiores e, com isto, afastando-se de se lançarem autenticamente ao encontro de outro.
            “Felicidade”, assim, expõe como fratura os pequenos horrores e sordidezes dos cotidianos descompromissados e enfadonhos das vidas mesquinhas e acanhadas, quase como se narrasse uma crônica de uma infelicidade crônica.
            O fecho do enredo apresenta-nos um término antológico quando o casal mais velho do filme, que estão nos estertores de um longo casamento de 40 anos, reúne a família e, escondidos pelas máscaras e vernizes sociais, brindam à felicidade. Neste instante entra o garoto púbere eufórico e feliz por ter finalmente ejaculado pela primeira vez na vida e grita: gozei. Será, então, isto que é felicidade: um alegrar de um rápido gozo? Creio que não. Apenas concordo com a escritora portuguesa Inês Pedrosa quando diz que “não é de serem felizes que as pessoas têm medo; é de escolher – da responsabilidade da escolha, do compromisso que ela acarreta”.
            “Felicidade” é vencedor de vários prêmios a sua época, entre eles o da Crítica Internacional em Cannes e o Metro Media Award de Toronto. Um filme realizado já tem mais de dez anos (1998), mas que não é datado, nem poderia, afinal nada é datado no lado escuro e oculto da alma humana. 

Joaquim Cesário de Mello

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