sábado, 24 de março de 2012

SOU UM HOMEM OU UM PRATO DE SOPA?



            E eis que me chega às mãos e aos olhos o livro “A Ilusão da Alma” de Eduardo Giannetti (Companhia das Letras, 2010), livro este que me foi emprestado pelo amigo e coeditor deste blog, Marcos Creder.
            Entre muitas coisas em comum com Marcos temos a cumplicidade de gostarmos de Eduardo Giannetti, de seu estilo literário, de sua verve, de sua fina ironia e de sua multifacetada erudição. Giannetti, economista por formação e igualmente graduado em ciências sociais, é antes de tudo um curioso da condição humana e de sua perambulante existência. Professor universitário e vencedor de dois prêmios Jabuti, Giannetti é um profícuo instigador e intelectual de ponta em um cenário carente de intelectuais de ponta.
            Acontece que o citado livro me chega em um momento reflexivo de vida em que espontaneamente venho me indagando sobre os efeitos do cérebro e do corpo sobre a constituição e imagem que temos de nós mesmos e do mundo circundante. Certa vez disse Jaspers algo como quando morrer meu mundo morre comigo e a realidade fica. A realidade independe de nós, porém o mundo é uma construção psicofenomênica de nossa mente. A relação entre consciência e realidade, entre homem e mundo, é tema filosófico há milênio, porém neurocientificamente estamos saindo do engatinhar para os primeiros passos cambaleantes e trôpegos rumo à autonomia futura.
            A chamada “Década do cérebro”, anos 90 do século XX, trouxe-nos importantes descobertas dessa área do corpo pouco conhecida que é o cérebro humano. Desde então avançamos no conhecimento sobre o mesmo, entretanto estamos praticamente um pouco mais além do que um começo. O caminhar deve ser longo e fascinante.
            Séculos atrás Descartes descrevia a mente humana como uma entidade extracorpórea. A relação íntima e intrínseca entre mente e cérebro vai, assim, aos poucos, deixando de ser um enorme mistério insondável, Hoje sabemos, como dia Giannetti, que o cérebro engendra a mente que, por sua vez, interroga o cérebro que assim assombra a mente. Conhecer mais sobre esta massa cinzenta que temos no interior do crânio e que pesa aproximadamente 1,3 quilos é talvez a última fronteira humana da ciência. Nele se inicia e residem nossas lembranças, sonhos, sentimentos e emoções. O cérebro é por si só um inteiro universo.
            E o que tem o livro de Giannetti a haver com isto? Muito, afinal trata-se como ele mesmo titula de uma “biografia de uma ideia fixa”. Seu conteúdo é um relato pessoal e revelador, consequência de uma retirada de um pequeno tumor cerebral porque passou o autor. Quem nos rege: o cérebro ou a mente? Aí está a espinha dorsal de “A Ilusão da Alma”. Escrito em forma um tanto romanceada o livro é igualmente um ensaio filosófico sobre o tema.
            Por séculos a humanidade acreditou – ainda acredita – na crença ideológica do “livre arbítrio”, ou seja, na nossa capacidade objetiva e subjetiva de escolher nossas ações. Eticamente falando com o livre arbítrio somos moralmente responsáveis por nossos atos. Psicologicamente falando, então, a mente controla o cérebro. Para Santo Agostinho o livre arbítrio é um bem proveniente de Deus. É a condição que Deus nos deu para sermos livres, até mesmo para sermos contra Deus. Para São Tomás de Aquino o libre arbítrio é baseado no exercício da razão e esta razão nos diferencia dos animais. Os animais não têm livre arbítrio, os humanos sim. O livre arbítrio funda o que chamamos de alma.
            Giannetti discute se nosso livre arbítrio é tão livre assim, afinal, afirma ele, as leis que regem o universo são alheias a nós e nossa “soberana” vontade. A vontade humana é fruto direto e indireto das mesmas leis que regem o universo onde o homem habita e está a ele submetido. E conclui que a vontade é independente da vontade. Será? Será que nos resumimos a uma sopa de endorfinas e que somos meros joguetes, feito marionetes, da química cerebral e que nosso Eu tem seu berço na hipófise? Não podemos desconsiderar isto.
            Alterações nos níveis dos neurotransmissores (tais como serotonina, noradrenalina, dopamina), por exemplo, fisiologicamente nos induz estados depressivos. Deprimidos nosso humor muda, assim como nossos pensamentos e nossa relação com os sentimentos e o mundo. A depressão, por assim dizer, é uma morbidez do organismo e do ser como um todo. Em depressão nossa lucidez não é a mesma, comprometendo a vontade, a interpretação e a tomada de decisões. Deprimidos nosso Eu se transforma e a relação com a vida também.
            Mas antes de vermos aqui uma apologia à química cerebral tão somente, deixe-me contar uma passagem da minha vida quando, talvez pela primeira vez, tive contato explícito com a mente humana. Estava eu aos 10 anos de idade em um hotel de veraneio e lá estava um padre que sabia hipnotizar. A gurizada toda ficou curiosa e um primo meu, de mesma idade, ofereceu-se como voluntário. Após colocá-lo em transe hipnótico o padre pôs na palma de sua mão um palito de fósforo e iniciou sugestionando que o mesmo pesava um quilo, dois quilos, cinco quilos... trinta quilos. Lá estava meu primo com a mão no estendida no chão.
            Pois é. Podemos até ser produto de bilhões de células. A alma humana pode ser uma enganação que o cérebro nos oferece. Que o homo sapiens seja apenas um homo iludens. Todavia a mente também ilude o cérebro ao ser capaz de transformar um palito de fósforo em uma tonelada.
            Seja o que for, portanto, a alma humana, a mente ou o psiquismo, seja lá quem se aloja naquilo que chamamos puramente de consciência (Freud já nos falava do inconsciente psíquico), seja de que matéria ou argamassa é feito nosso Eu. Seja quem paga as minhas contas... está aberto o debate.
            Quanto e pergunta que dá título ao presente texto penso que sou, talvez, um pedaço de carne encharcada em um prato de sopa que lhe dá o gosto, mas que se confunde textura com o sabor.
            Valeu Marcão. Uma digestiva leitura que, porém, desarruma alguma coisa por dentro e por detrás das crenças.

Joaquim Cesário de Mello

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