domingo, 25 de junho de 2017

Solidão

Refiz as contas. Exagerei no último artigo. Devo ter lido “Cem anos de Solidão” perto dos 17 anos de idade. Realmente devo ter apenas folheado aos 13 ou 14, uma edição cuja capa trazia figuras de tarô e um mapa de quiromancia. Disseram-me  nessa ocasião que  este texto era de difícil leitura, pois além de ter uma longa e complexa trama,  envolvia vários personagens com nomes que se repetiam e criavam confusão.
 
Costumamos dizer que algumas leituras são inadequadas aos adolescentes.  Um texto de Machado de Assis ou de Guimarães Rosa, ou um clássico de Flaubert, são leituras de baixo aproveitamento aos mais jovens, justificam. Não discordo inteiramente de quem traz esses argumentos, mas, por outro lado, pergunto-me, se não conhecermos esses autores nesses anos de ensino médio, teremos oportunidades conhecê-los e de ainda ler seus textos adiante?

Então, sob o argumento de que “Cem Anos de Solidão” não era obra  para leitores  amadores, tomei um caminho mais prudente: fiz uma espécie de caminho anacrônico, lendo, de início, seus textos mais acessíveis e mais curtos.  Comecei a ler seus contos, suas novelas e seus pequenos romances, para, só depois, com a  familiaridade, tomar o clássico romance do autor. Tive com isso algumas descobertas. Descobri que praticamente li sua obra de trás para frente - pude confirmar tambeḿ  que os textos da maioria dos (bons) escritores, tendem a se enxugar e a se refinar com a experiência - as palavras desnecessárias são inimigas da literatura.
Na leitura às avessas que fiz de Gabriel Garcia Marques, constatei ainda algo curioso - “Cem Anos de Solidão” é uma obra longa, mas ao mesmo tempo é a síntese da produção do escritor colombiano. Em suas páginas estão passagens que deram origem a vários outros textos - geralmente se vê, na construção de romances, o contrário, ou seja,  uma colagem de pequenas histórias formarem o próprio romance. E, “Cem Anos de Solidão” inaugura praticamente toda obra de Gabriel Garcia Marques, é, além de um romance, a matriz de sua criação, dele gerou-se e desmembrou-se belas histórias. Ao folheá-lo, encontrei, com certa facilidade, textos que vieram a ser publicados anos depois. Li em uma ou duas páginas, a lendária história de Erêndira (“A Triste História de Erêndira e sua avó Desalmada”),  mais adiante passagens que inspiraram o romance “Ninguém Escreve ao Coronel”, ou “Os Funerais da Mamãe Grande” e, entre outros, do belo texto “Do Amor e Outros Demônios”. Essa constatação me fez pensar que o escritor ou o criador - ou mesmo qualquer sujeito -, já tem em mente a frase ou o tema que vai conduzi-lo a repetir por toda vida.

Determinado segmento teórico da psicanálise desenvolveu a ideia de que o sujeito carrega consigo sua marca, especialmente  seu “fantasma”, ou seja, uma espécie de sentença que, incrustado em nossa psique, se desdobra em enfrentamentos e repetições por toda vida. Um dos objetivos da análise seria justamente, num primeiro momento, amplificar os elementos ligados à esse “fantasma”, para que depois, num outro tempo, ao constatar a repetição, reduzi-lo e, consequentemente reconfigurá-lo . Seria o mesmo que Cervantes ao contar as peripécias de D. Quixote, amplificasse a biografia do personagem em diversas capítulos, detalhando os diversos episódios e ocorrências de sua louca epopéia, para em seguida reduzi-lo à frase título: “O  Engenhoso fidalgo de Dom Quixote de la Mancha”, um cavaleiro andante, leitor enlouquecido de antigos romances de cavalaria. Todas as passagens do gênero picarescas nessa clássico de Cervantes, confirmam esse enunciado e sintetizam no seu título.

O que  em psicanálise é chamado de “fantasma”, em literatura pode ser chamado de leitmotiv (motivo condutor). O fantasma resume o sujeito numa frase, num título ou num subtítulo - isso mesmo! somos um título, uma frase, posteriormente um epitáfio. A diferença que se faz da literatura, é  esse enredo de pano de fundo na psique humana, é desconhecido do próprio sujeito, dono de seu fantasma.  

Qual seria o leitmotiv ou o fantasma na obra de Gabriel Garcia Marques? Nas entrelinhas do seu texto, hoje posso observar palavras silenciosas, ocultas, imergidas em imagens oníricas , com intervalos de profunda solidão. Solidão é palavra: a solidão deixada pela passagem do tempo, pela sucessão de morte, essa incorrigivel epidemia humana; a solidão gerada pelo lugar imaginário de Macondo, uma cidade solitária na sua inexistência - enfim, uma solidão latinoamericana. acrescento que o texto de Gabriel Garcia Marques me fez tocar numa habitual solidão:  A solidão daqueles que leem e escrevem. Se as crianças solitárias reservaram sua vida a construir amigos imaginários, aquelas que tiveram acesso a textos com alguma precocidade, tiveram seus amigos literários. 


Marcos Creder








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