domingo, 8 de janeiro de 2017

A Tragédia Grega de nosso tempo

Há alguns acontecimentos terríveis que se repetem, que suscitam discussão e que estão longe de ser compreendidas. Como são acontecimentos trágicos e (felizmente) raros,  geralmente ganham muito espaço na mídia. Refiro-me à notícia que faz com que pessoas, por razões as mais diversas, venham a cometer múltiplos  homicídios  envolvendo um grande número de pessoas e em seguida se matam. São eles, membro extremista de alguma organização política ou religiosa,  rebeldes que se voltam contra seus colegas de escola ou da comunidade,  ou pessoas que saem atirando em qualquer transeunte, ou ainda, como no caso recente noticiado em Campinas, sujeitos que transtornados  executam filhos, ex-mulher e diversas pessoas numa festividade (no caso de Campinas, no réveillon - ato de razão ainda pouco conhecida. A primeira pergunta que se faz quando assistimos a mais uma dessas tragédias é corriqueira: são, essas pessoas, normais?


A essa pergunta, qualquer resposta é especulativa, embora a maioria da opinião pública tende a colocar o sujeito no lugar da doença psíquica - por pura falta de outros argumentos e, acrescento, por puro comodismo - pois se se comete um ato insensato, e a  insensatez é uma forma de  loucura (condição que nem eu nem  o leitor é acometido - risos) então o ato se explica pelo adoecimento.- Atribuir esse caso a um transtorno não é um erro, mas não podemos “psiquiatrizar” todos os atos violentos da humanidade - a maioria dos atos insensatos ainda são frutos  pessoas mentalmente sãs.  Nas especulações que são geralmente aventadas, existem estes que entendem  esse acontecimento a um  fenômeno pessoal de natureza psíquica, mas há outros que  veem como evento de um esgarçamento no tecido social. Enfim, uns preferem chamar  de loucos, outros de fanáticos e mais alguns, de vítimas do contexto violento da sociedade que, sendo sujeitos normais, descarregam seus melindres  nesses atos odiosos. Um fato é consenso: todos estavam possuído pelo ódio, pelo desejo de vingança, e seus atos consequentemente suscitaram sentimentos igualmente odiosos.


O ódio e a vigança, nesse acontecimento de Campinas, em especial, me fez lembrar uma antiga peça grega do teatro de Eurípides: Medeia. Para quem não conhece, Medeia é uma personagem, uma feiticeira, que se casa com Jason, com o qual mantém fortes laços amorosos,  e desse relacionamento tem dois filhos. Jason se apaixona por outra pessoa e se separa de Medeia. Entorpecida pelo ódio e pelo sentimento de  abandono, Medeia planeja vingar-se: matar os filhos e desaparecer. Medeia não se mata, mas sai de cena de forma magica voando em direção ao sol.

Só após assistir a esses acontecimentos recentes,  que venho a compreender, que uma peça tão antiga, ainda tenha sobrevivido entre nós. Medeia é um fragmento extremo do nosso funcionamento de nossos ressentimentos. Medeia é o retrato  falado do ódio e da vingança. Enfim,   a expressão desses ressentimentos que se converte em tragédia.  Medeia é mais uma das tragédias da vida humana. E a pergunta, mais uma vez, se repete: Medeia era normal? Eurípides a faz feiticeira, e acredito que muitos constroem seus personagens como seres sobrenaturais para  disfarçar o incômodo de nossa condição. Na Idade Média, por exemplo, era mais cômodo atribuir todas as maldades do mundo às bruxas ou ao satanás a ter que aceitar que nossos impulsos , quando não domados, são mais cruéis do que de muitos animais.  A verdade é que “Medeias” são  domadas diariamente dentro de nós, algumas, rara e felizmente vão ao ato extremo.  O que nos contém, entre outras coisas é a fala, o argumento, a negociação, a conciliação e, naturalmente nossas censuras internas. A diferença que há entre estes e os verdadeiros assassinos são o fato de que estes homicidas e suicidas são sujeitos de atos. Freud num belo texto, Totem e Tabu finaliza ao comentar o processo de transição da horda à civilização trazendo a seguinte frase: "No princípio era o ato".  O seu entendimento pressupõe que o surgimento da linguagem apazigou, por assim dizer, os nossos instintos mais agressivos. Mas esse apaziguamento não necessariamente anulou os atos do humano - até porque eles, em algumas ocasiões, são necessários.  Houve apenas um adestramento instintivo, que converteu sentimentos em palavras, palavras que eventualmente são renunciadas e que levam a essas tragédias.   Medeia, como peça e como mito, suponho, que jamais deixará de existir e de nos visitar.

Marcos Creder

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