Apesar desse artigo ser publicado nesse Domingo, estou escrevendo hoje, dia 31 de Agosto. Pensei sobre que tema que escreveria e, ao me dar conta de que estou no último dia do mês, rememoro esse longo mês que hoje termina. Por que tão longo? Agosto é um mês já marcado por acontecimentos desafortunados e pela ventania, mas nesse ano de 2016, Agosto foi mais Agosto do que em anos anteriores. Se se falam de mortes e de mês de mau agouro, este Agosto, especialmente foi marcado por duas grandes perdas para a saúde mental em Pernambuco: o psiquiatra Othon Bastos e o psicanalista Zeferino Rocha.
Apesar do mundo vertiginosamente crescer em número de pessoas, sou daqueles que assiste a outra ponta, o lado dos que se foram. Desse modo, o mundo a cada dia, a cada mês, a cada ano, deixa-nos mais solitários e envelhecidos. A solidão assim como saudade - como bem disse Guimarães Rosa - tem um pouco de velhice.
Quando comecei a me interessar pela área “psi”, coincidência ou não, um dos primeiros textos que me foi apresentado foi um capítulo das “Conferências Introdutórias de Psicanálise” em que Freud trata dos possíveis impasses que existiam entre a Psicanálise e a Psiquiatria (este, inclusive, é o título do artigo). Cabe lembrar que eu não tinha a menor ideia de que havia impasses entre a psiquiatria e a psicanálise, ou melhor, entre grupos de psiquiatras e de psicanalistas. Meu pensamento assemelhava-se ao de qualquer leigo que misturava Freud, Pinel e Jung no mesmo saco de conhecimento. Depois de tomar conhecimento de que havia diferenças - e de fato há - percebi que havia diplomacia de ambos as partes, uma política de tolerância e boa vizinhança entre os dois saberes; muitos congressos de psiquiatria, por exemplo, contavam com significativa presença de psicanalistas, e numerosos psiquiatras nos eventos de psicanálise. Suponho que, por ocasião que comecei a trabalhar na área de Saúde Mental, assisti ao início da cisão e a formação dos distantes continentes da psicanálise e da psiquiatria que observamos hoje. Entre seus ícones, desde então, estavam justamente eles, Othon Bastos na psiquiatria e Zeferino Rocha na psicanálise. Cabe destacar que os dois não tinham pessoalmente qualquer restrição ao saber do outro, pude observar, muitas vezes e com profundidade, digressões de um sobre o saber do outro. No entanto, para uma grande massa de psiquiatras e psicanalistas ocorria, em verdade, um clima de eterno enfrentamento, como se um saber pudesse dominar o território do outro.
Assistimos costumeiramente a a embates passionais e intolerantes entre diversos setores da sociedade, e, no conhecimento acadêmico, mesmo que se tente levantar a bandeira da “verdade científica”, não poderia ser diferente. E não poderia ser diferentes por duas razões: porque o levante de bandeiras é , por si só, um ato passional e por não existirem verdades científicas, tampouco absolutas. O que existem, em verdade, são instituições que se agarram em alguns mitos e arraigadamente os defendem em seus departamentos ou diretórios, como se fossem um time de futebol. Um saber flamengo, outro fluminense. Esse tema mereceria um artigo à parte
Conheci Othon Bastos - ou como chamávamos respeitosamente, dr. Othon - nos corredores e reuniões do Hospital das Clínicas da UFPE quando era residente. Penso que conheci seu sonoro riso antes de seu semblante, aliás sorrir é algo raro entre muitos profissionais “psis”, que tendem a incorporar uma caricata sisuda, algo como se a seriedade jamais mostrasse os dentes. Não demorou muito para tê-lo como exemplo de mestre. As aulas ministradas ao nosso pequeno grupo em formação eram extraordinárias. Dr Othon, muitas vezes, atravessava e interrompia as nossas apresentações formais de seminários e tecia longos comentários de sua experiência clinica, fazendo com que esses encontros fossem muitos agradáveis e ainda mais proveitosos. Particularmente achava interessante as suas digressões, que traziam, de forma inteligente, temas da psiquiatria relacionando-os aos clássicos da literatura e do mundo das artes. Ao rememorar os famosos conceitos de Psicopatologia geral, ainda hoje, me vem à mente, a imagem sonora de suas voz, que articulava conceitos fenomênicos com autores, clássicos da psiquiatria e das escolas europeias. Penso, e não há exagero algum nisso, que sem dr. Othon, autores como Jaspers, Schneider, Esquirol, Bleuer, Clérambault, Henri Ey (seu mestre em Paris) seriam meros representantes datados da história da psiquiatria. Dr Othon reavivou em muitos de seus admiradores a ideia de que não se é bom clínico com manuais e escalas avaliativas e devolve à especialidade seu estado de arte.
Já psiquiatra, interessei-me por temas da teoria freudiana e, após alguns anos, submeti-me ao mestrado em Psicopatologia fundamental e Psicanálise. Da banca de seleção à banca da defesa de dissertação estava lá o outro, Zeferino Rocha, um dos maiores conhecedores e multiplicadores da teoria freudiana. Suas aulas organizadas e didáticas e sua escrita precisa, influenciou-me bastante na forma de entender e escrever a psicanálise. um profundo conhecedor de epistemologia e filosofia, Zeferino, igualmente risonho e espirituoso, pode me propiciar uma genealogia do pensamento freudiano - o que seria da psicanálise sem a compreensão histórica de sua teoria?
Atribui-se à Buda a frase de que a sabedoria está no caminho do meio. "Meio" sem analogia ao mediano, mas "meio" como sinônimo de intersecção, de articulação entre dois saberes, de interdisciplinaridade. Um "meio" que ao contrário da mediocridade, põe o sujeito no privilegiado lugar da fortuna, lugar que esses dois mestres, que desapareceram em Agosto, habitaram com alegria e inteligência
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Marcos Creder
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