Freud em "Mal-estar da Civilização" - um texto que considero canônico, destacou que um dos grandes impasses, ou um dos conflitos da condição humana encontra-se justamente na relação entre seus pares. O convívio social, inclusive nas relações amorosas, não poupa os prováveis e previsíveis embates entre as pessoas sejam eles colegas de trabalho, amigos, namorados, sócios, familiares. Essas relações se sustentam na ambiguidade, nos equívocos, na gratificação e na frustração, na ilusão e na fantasia.
Uma fantasia frequente na nossa sociedade e em nossa época é a ideia de que corporações funcionam como um substituto das relações familiares. Geralmente quando se chega ao final de ano ou em datas especiais, todos se reúnem e fazem rasgados elogios e analogias aquela unida e harmoniosa "família" - "àqueles que fazem a empresa". todos estão felizes, mas nem todos da "família" corporativa estão presentes, pois a família corporativa se conceitua como uma família de sucesso. O fracasso ou os fracassados foram afastados ou desligados "quando mesmo? - ninguém se lembra. E é dai que a analogia que se faz entre uma empresa e o grupo familiar se acaba. a familia apesar de relutar ainda tem que lidar com os fracassados
O filme "Dois Dias, Uma noite", dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne descreve bem esse cenário das relações contemporâneas que se sustentam com essas falsas ou embusteiras analogias. O roteiro é bastante simples e talvez pelo realismo dessa simplicidade, doloroso. Conta a história de Sandra, funcionária de uma empresa que ao se recuperar de uma depressão, descobre que está prestes a ser demitida, pois sua função irá se extinta e migrar via bonificação para os demais funcionários. Essa situação poderá ser revertida caso a personagem consiga a reconsideração dos outros funcionários em aceitá-la de volta, abrindo mão do bônus de sua ausência. O filme transcorre na peregrinação de Sandra que ainda abatida pela depressão, vai de porta em porta tentar reverter sua possível demissão. Daí em diante os diretores nos convida a entrarmos num pequeno recorte do universo dos dezesseis colegas de trabalho e com isso dissolve paulatinamente a ideia da irmandade corporativa.
Um fato importante que é questionado pela empresa e pelos funcionários é justamente a capacidade de Sandra em retomar suas funções no trabalho. O fato dela ter tido a doença depressiva, muitas vezes interpretada como uma doença da falta de motivação voluntária, parece agravar ainda mais sua situação. Claro que no discurso de muita gente a depressão é vista como um evento clínico tratável. Mas, como disse, essas pessoas mantém essa ideia apenas no discurso. Por questões de pudor ou educação, alguns não dizem o que realmente pensam da depressão: como uma fraqueza moral de almas frágeis de pessoas imaturas, eventualmente de vida errante. Os mais sinceros são mais objetivos: chama-no de preguiçosos. A preguiça, como se sabe, é um dos sete pecados capitais. Antes, ainda no período medieval, chamava-na de acídia, uma palavra desconhecida que vai além , bem mais além do significado de preguiça como a conhecemos. A acídia como diz o teólogo medieval João Cassiano, era um "desgaste ou perturbação do coração, especialmente frequente em solitários", estava associada à "tristitia" e à "desperatio" ao entristecimento e ao desespero. Parte do pensamento religioso julgavam como um acontecimento moral e parte - como os escolástico - traziam de volta a visão de hipócrates para o sofrimento melancólico, para a melancolia, para a physis, para a natureza. Como podemos observar no filme ou fora dele, essa ambiguidade persiste nos nossos tempos. Embora que nem sempre possamos fazer da melancolia e da depressão como sinônimos, muitos imaginam como se fosse do campo do moral/espiritual, como se pensou a acídia, e outros do campo da natureza psíquica como se pensa a depressão/melancolia. Muitas vezes a desambiguação dada a essa forma ambivalente de pensar ocorre justamente quando lidamos como sujeitos de desejo, fato que poderia construir o enunciado da seguinte forma: "se eu perco bônus, Sandra era preguiçosa, se ganho, talvez sofresse de depressão".A depressão pode ser vista como a expressão do fracasso contemporâneo. O paradoxo surge no momento em que nomeamos cientificamente as palavras depressão ou a melancolia justamente num momento em que a sociedade industrial prometeu uma crença quase que religiosa para a bem aventurança e para a felicidade.
O filme transcorre durante um sábado e um domingo, dias geralmente mais felizes, e se encerra na segunda-feira com sua angústia de um eterno recomeço.
Marcos Creder

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