domingo, 7 de agosto de 2016

A ressaca da segunda-feira



Costumo dizer que Nelson Rodrigues  elaborou excelentes  frases a partir de pensamentos óbvios, daqueles que sempre se pensou mas que , de alguma maneira, era embaraçoso dizê-los em voz alta. A beleza de suas frases expressa-se justamente na obviedade. "Sábado é uma ilusão","amar é dar razão a quem não tem", a "televisão matou a janela"   "o inimigo nunca trai" são exemplos dessas frases que fazem nosso pensamento  tropeçar. A última que citei, "o inimigo nunca trai", acho especialmente interessante, pois abre um pseudo paradoxo  em que se destaca  umas das grandes virtude, ou seja a lealdade,  naqueles que nos odeia - quem nos odeia é fiel à logica do ódio. Além disso, suponho que essa frase do dramaturgo ajuda a quebrar a maneira de pensar das pessoas que, envolvidas por um irrefreável maniqueísmo, dividem o mundo em dois times. Os bons e os maus, os amigos e os inimigos, o certo e o errado, o ético e o antiético. Se aqui eu resolvesse  aprofundar esse tema, cairia  naquela velha pergunta que circula entre os filósofos: Afinal, somos essencialmente bons ou maus? Essa discussão interminável, e provavelmente infrutífera,  entre a bondade e maldade, otimismo e  pessimismo fez com que a psicanálise e parte de alguns pensamentos filosóficos desconsiderassem a necessidade de escolher um dos lados,  pois partem do pressuposto de que não há lado  moralmente bom ou ruim. Como disse, certa feita, um comentarista esportivo, "que seria do flamengo se não fosse o fluminense?".

Freud em "Mal-estar da Civilização" - um texto que considero canônico, destacou que um dos grandes impasses, ou um dos conflitos da condição humana encontra-se  justamente na relação entre seus pares. O convívio social, inclusive nas relações amorosas,  não poupa  os prováveis e previsíveis embates entre as pessoas  sejam eles colegas de trabalho, amigos,  namorados, sócios, familiares. Essas relações se sustentam  na ambiguidade, nos equívocos, na gratificação e na frustração, na ilusão e na fantasia.

Uma fantasia frequente na nossa sociedade e em nossa época é a ideia de que corporações funcionam como um substituto das relações familiares. Geralmente quando se chega ao final de ano ou em datas especiais,  todos se reúnem e fazem rasgados elogios e analogias aquela unida e harmoniosa "família" - "àqueles  que fazem a empresa". todos estão felizes, mas nem todos da "família" corporativa estão presentes, pois  a família corporativa se conceitua como uma família de sucesso.  O fracasso ou os fracassados foram afastados ou desligados "quando mesmo? - ninguém se lembra.  E é dai que a analogia que se faz entre uma empresa e o grupo familiar se acaba. a familia apesar de relutar ainda tem que lidar com os fracassados


O filme "Dois Dias, Uma noite", dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne descreve bem esse cenário das relações contemporâneas que se sustentam   com essas  falsas ou embusteiras analogias. O roteiro é bastante simples e talvez pelo realismo dessa simplicidade, doloroso. Conta  a história de Sandra,  funcionária de uma empresa que ao se recuperar de uma depressão, descobre que está prestes a ser demitida, pois sua função  irá se extinta e migrar via bonificação para os demais funcionários. Essa situação poderá ser revertida caso a personagem consiga a reconsideração dos outros funcionários  em aceitá-la de volta, abrindo  mão do bônus de sua ausência. O filme transcorre na peregrinação de Sandra que ainda abatida pela depressão, vai de porta em porta tentar reverter sua possível demissão. Daí em diante os diretores nos convida a entrarmos num pequeno recorte do  universo dos dezesseis colegas de trabalho e com isso dissolve paulatinamente a ideia da irmandade corporativa.

Um fato importante que é questionado pela empresa e pelos funcionários  é justamente a capacidade de Sandra em retomar suas funções no trabalho. O fato dela ter tido a doença depressiva, muitas vezes interpretada como uma doença da falta de motivação voluntária, parece agravar ainda mais  sua situação. Claro que no discurso de muita gente a depressão é vista como um evento clínico tratável. Mas, como disse, essas pessoas mantém essa ideia apenas no discurso. Por questões  de pudor ou  educação, alguns não dizem o que realmente pensam da depressão: como uma fraqueza moral de almas frágeis de pessoas imaturas, eventualmente de vida errante. Os mais sinceros são mais objetivos: chama-no de preguiçosos. A preguiça, como se sabe, é um dos sete pecados capitais.  Antes, ainda no período medieval, chamava-na de acídia, uma palavra desconhecida que vai além , bem mais além do significado de preguiça como a conhecemos. A acídia  como diz o teólogo medieval João Cassiano, era um "desgaste ou perturbação do coração, especialmente frequente em solitários",  estava associada à "tristitia" e à "desperatio" ao entristecimento e ao desespero.  Parte do pensamento religioso julgavam como um acontecimento moral e  parte - como os escolástico - traziam de volta a visão de hipócrates  para o sofrimento melancólico, para a melancolia, para a physis, para a natureza. Como podemos observar no filme ou fora dele, essa ambiguidade persiste nos nossos tempos. Embora que nem sempre possamos fazer da melancolia e da depressão como sinônimos,  muitos imaginam como se fosse do campo do  moral/espiritual,  como se pensou a acídia, e outros do campo da natureza psíquica como se pensa a depressão/melancolia.  Muitas vezes a desambiguação dada a essa forma ambivalente de pensar ocorre justamente quando  lidamos como sujeitos de desejo, fato que poderia construir o enunciado da seguinte forma: "se eu perco bônus, Sandra era preguiçosa, se ganho, talvez sofresse de depressão".

A depressão pode ser vista como a expressão do fracasso contemporâneo. O paradoxo surge no momento em que nomeamos cientificamente as palavras depressão ou a melancolia justamente num momento em que a sociedade industrial prometeu uma crença quase que religiosa para a bem aventurança e para a felicidade.

O filme transcorre durante um sábado e um domingo, dias geralmente mais felizes,  e se encerra na segunda-feira com sua angústia de um eterno recomeço.


Marcos Creder

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