domingo, 24 de julho de 2016

Paulina sem Grace

Há muito tempo que assisti a um filme que considero marcante, paradigmático, e que já devo ter comentado uma vez ou outra aqui mesmo no LiteralMente. Falo de Dogville do polêmico e consagrado diretor Lars Von Trie, que traz a história de uma jovem que por humildade excessiva, humanitarismo e outros bons sentimentos humanos, vai conviver numa minúscula vila no alto da montanha,  lugarejo que se resume a uma pequena rua. A vila: a pequena Dogville.   A pequenez dessa minúscula comunidade  não se resumirá ao número reduzido de habitantes, mas revelará, em cada passagem do filme, a pequenez dos atos e da obscuridade da índole do humano. Grace, a personagem principal, se submeterá as mais terríveis humilhações já vivida por uma pessoa, especialmente por uma mulher que vão desde à submissão aos caprichos de um ou outro personagem aos atos de franca violência sexual. Tentarei não contar o final, mas Dogville, passará por uma reviravolta catártica nos seus últimos minutos, um dos melhores finais de filmes que já assisti - uma tragédia à moda grega que faz de Grace uma  cruel heroína.

Falei no último artigo do cinema argentino, e nele, num filme em especial, vi se repetir o drama de Dogville. Uma jovem e idealista advogada, renuncia a uma carreira profissional de provável sucesso para se dedicar a trabalhar como professora numa comunidade pobre nos arredores de Buenos Ayres. Lá se defronta com a pobreza, a ignorância de uma comunidade de excluídos que sequer reconhece a lei ou seus direitos. Acidentalmente, ou por engano, Paulina - a personagem-título - é vítima de estupro coletivo. O acontecimento mobiliza e horroriza  todos os seus familiares, mas surpreendentemente, deixa a própria Paulina inerte, sob o argumento de que teria sido vítima de um grupo que, por razões sociais, desconhece os direitos humanos. E assim termina o filme Paulina, sem a cartase tão esperada que transbordou em “Dogville”. “Paulina”, por sinal foi o nome título do longa no Brasil, o original chama-se La Patota que traduz-se como “A gangue” - título muito mais interessante, por sinal.

Atribui-se a Aristóteles a seguinte frase em relação  a dois autores teatrais gregos: “Sófocles escreve as tragédias da vida como deveria ser, Eurípides escreve como as são de fato”. Aristóteles comparava a peça Édipo Rei com a desconcertante peça Medeia. Aqui, modestamente, comparo os dois finais de filme, “Dogville” encerra-se como gostaríamos que fosse e “Paulina” como muitas vezes ocorre em realidade, mostrando a ambiguidade de sentimentos envolvendo a violência sexual. A sensação que se tem em “Paulina” é de que o filme encerra no cinema, mas continua na cabeça de cada espectador, que por ter um final reticente e impreciso, provoca um certo desconforto.   O filme tem um roteiro muito bom e bem cuidado, e, um elenco convincente. Pensei em muitas passagens que iria  incorrer em erros maniqueísta, tão comuns em temas como o esse que dedicou. Mas Paulina  traz de volta o mesmo impasse vivido por Grace de Dogville, onde o excesso de resignação ao invés de virtuoso, demonstra um certo ar de soberba perante os atos humanos. No livro Pecar e Perdoar, Leandro Karnal discorre sobre esse tema com muita desenvoltura, ao relacionar a vaidade o cerne de toda errância pecaminosa entre os "pecados capitais". Podemos observar entre as protagonistas do filme um certo ar de superioridade ao se demostrarem  resignadas - Grace vacila no final. O discurso que dá relevância à  virtude, com diz Leandro Karnal, peca em outra errância: o orgulho. Assistimos nos dias de hoje a um incontinência dessas falas  virtuosa. a maioria contudo, enfraquece no fato no ato. Recomendo a leitura de Karnal, um livro que disseca com precisão a moral religiosa do sujeito ocidental.


Marcos Creder

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