Cada vez mais escutamos das autoridades governamentais, independente de ideologias - e isso não pretendo discutir nesse texto - a necessidade eminente de discussões e de revisões no sistema de saúde e, principalmente, no sistema previdenciário - sob o nome da enigmática da Reforma Previdenciária. Nessas discussões se propõe recalcular as contas das aposentadorias em relação a tempo para gozo, o pecúnio e a adequada assistência médica nas situações limites. varias questões são levantadas, mas, geralmente, se deixa de lado é um dos itens principais: o aumento da expectativa de vida da população mundial e a consequente medicinização do envelhecer.
Há um curioso romance de Saramago intitulado de “As Intermitências da Morte” que narra a fantástica história do dia em que estranhamente a morte deixou de existir. Antes de todos se felicitarem com a vida eterna, dois problemas surgem, as religiões ameaçam desaparecer e a previdência entrar em grave colapso. O livro permeia a ideia de que, apesar do infortúnio da “única certeza”, temos que morrer para que tudo funcione normalmente. Desse mesmo modo pensou, não de maneira fantástica, mas realista, o médico Atul Gawande no excelente livro “Mortais”. Gawande é médico cirurgião e traz de volta a velha discussão a respeito de como a medicina ainda guarda certa ingenuidade no lidar com a finitude. O médico que no passado tinha como objetivo propiciar o conforto, bem-estar e diminuição do sofrimento de seus pacientes, converteu-se, graças aos avanços tecnológicos da medicina, no executor do adiamento da morte. A questão que destaca é que, com o aumento da expectativa de vida, o número de idosos aumentou e o número de situações de manutenção da vida, sem qualquer qualidade, também se intensificou. Envelhecer desse modo, fato cada vez mais frequente, diz Gawande, tornou-se um dos principais problemas da atualidade e que ainda é agravado com o perfil individualista da sociedade pós industrial, em que há um paulatino desaparecimento dos patriarcas e matriarcas.
Os idosos no passado eram mais raros e representavam o sinônimo da sabedoria e do cuidado. no Império Romano a expectativa de vida era de cerca de 30 anos. Dados estatísticos trazidos por esse autor são incontestáveis: na primeira metade do século XX apenas 11% das mortes ocorriam em hospitais, hoje mais de 70%. No século XIX os idosos residiam, em sua maioria, com os familiares, hoje já se dividem em 50% dos leitos de instituições de longa permanência - instituições que tentam dar acolhimento de qualidade, mas que terminam por privar, por outro lado, daquilo que os idosos mais se queixam, segundo Gawande: a sua autonomia.
Do mesmo modo que a medicina não sabe lidar com o idoso, também teria dificuldades de lidar com a morte, independente da faixa etária. Gawande comenta que os atos supostamente heróicos dos profissionais de saúde são, em sua maioria, propiciador de mais sofrimento ao sujeito - sem que fosse essa a intenção. Gawande, vai mais longe, narra várias situações em que mostra que é muito difícil lidar com o paciente terminal - um momento de extrema delicadeza na relação médico-paciente em que a medida certa, na forma em que os fatos são informados requer preparo, experiência e cautela, três itens que não ocorrem na tradicional formação médica.
“Mortais” é escrito com beleza e simplicidade apesar do tema ser de difícil leitura e de deixar o leitor no nihilismo natural e questionador do sentido da vida. Lendo Gawande observo que esse sentido só é parcialmente preenchido com as palavras do do século XIX do filósofo Nietzsche. Em “Assim Falou Zaratustra” o sentido do viver metaforiza-se numa travessia: “Perigosa travessia, perigoso a-caminho perigoso olhar-para-trás, perigoso arrepiar-se e parar. O que é grande no homem, é que ele é uma ponte e não um fim ... “
Marcos Creder
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