domingo, 20 de março de 2016

Fanatismo e Ponderação (parte I)


Do final do século XIX à primeira metade do século XX, a Psicopatologia Geral esteve em larga expansão. Teóricos e filósofos como Karl Jarpers,  Kurt Schneider, Krestchmer, Conrad, entre outros, estavam construindo Teorias Gerais das alterações psíquicas - a psicopatologia em si -, baseados, em sua maioria, na observação fenomênica do funcionamento mental dos pacientes de hospitais de alienados e manicômios, e, relacionando-as aos transtornos psíquicos correspondentes. Na verdade, dois continentes foram abertos no estudo do psiquismo, de um lado a visão desses teóricos e, do outro, a visão sob forte influência da psicanálise em que estariam o Próprio Freud, Bleuer, Jung. Uma forma de pensar daria  privilégio ou ênfase  à observação do fenômeno (donde veio a psicopatologia fenomenológica) e outra ,  destacaria sues estudos à interpretação. Há quem defenda que, nesse (e em outros) caso(s), não se pode servir a dois Senhores, que são duas formas de pensar diferentes, excludentes e antagônicas. Concordo que sejam diferentes, bem diferentes por sinal, mas discordo que sejam excludentes, muito menos antagônicas. A ideia de servir “a dois Senhores” bem exemplifica o tema que pretendo desenvolver nesse artigo. Se usei a palavra “Senhor”, pus de forma proposital para fazer analogia entre a academia e uma  instituição religiosa, pois não há verdades científicas ou filosóficas  plenas,  menos ainda religiosas - quer dizer, existem,  apenas, para seus fanáticos - tema que vou  desenvolver.

Na defesa arraigada de uma forma de pensar há   formação  de grupos, como agremiações ou um clube de futebol, em que se veste a camisa de um time e se desafia o seus opositores como se fizessem parte de outro planeta, do "eixo do mal", ou da ignorância. (Observo que o mundo cada vez mais, nos últimos tempos, vem se dicotomizando em pensamentos e conhecimento opostos, impossíveis de discussões). Há pensamentos flamengos e outros  fluminenses,  uns azuis, outros  encarnados; uns bons e outros maus, uns contra, outros  a favor; todos tensos, indialogáveis, longe de qualquer possibilidade de consenso. Esse fato, ao invés de levar a algum caminho mais sensato,  faz, por vezes,  com que os seus defensores  tornem-se caricatos e os seus argumentos venham a perder qualquer sentido de coerência, inclusive, tendem a colidirem com as próprias  ideias que defendem.  Hoje vejo rondar no meio intelectual esse fanatismo epistemológico, conceitual ou qualquer coisa parecida. Depois de assistir à defesa de argumentos caprichosos, percebe-se que há uma crescente movimento maniqueísta na percepção dos formadores de opinião. Assiste-se isso usualmente, e, nesses dias brasileiros, então… Voltemos ao fanatismo.(sabendo, contudo, que manifestantes, sejam de que pensamentos for, em sua maioria não são fanáticos)


Iniciei esse texto falando sobre psicopatologia, não por acaso. Um dos teóricos que citei acima fez um estudo aprofundado do estudo da personalidade e dentro do seu parâmetro elencou vários desses “desviantes”. A palavra “desvio”, muito démodé em psiquiatria ou psicologia, faz referência a um traço de funcionamento psíquico. Kurt  Schneider ao publicar um texto sobre Personalidades Psicopáticas, classificou, entre elas,  “um tipo” que todo cidadão tem conhecimento: “o fanático”.  O que seria a personalidade fanática? Segundo Schneider os fanáticos de personalidade seriam  aqueles que supervalorizam complexos de ideias e motivações que em virtude de sua exagerada acentuação afetiva, adquirem posição dominante, uma preponderância tirânica sobre o psiquismo. Seríamos todos fanáticos? Fanáticos como transtorno de personalidade não, mas, pode-se dizer que há traços de fanatismo em qualquer ser humano. Esses traços  crescem ou diminuem a depender de suas vivências sócio-pessoais e de suas  necessidades. A tendência do  fanatismo é  justamente colocar nossos afetos a frente do pensamento dito racional. Partindo dessa premissa se cai necessariamente em outra  suposição falsa, pois não existe sujeito que coloque o pensamento racional à frente do afetivo. Isso é uma verdade, somos movidos pelo desejo (alguns chamam de emoção). Contudo, podemos criar alguns dispositivos para tentar nos aproximar da sensatez.

O filósofo Karl Popper, da escola de Viena, dedicou-se a uma premissa  filosófico interessante ao se deparar com as  contradições do pensamento. Partindo da ideia de que não existem verdades absolutas, poderíamos nos aproximar de algo útil, ou com teor de verdade, se  se fizer o exercício da refutação, ou seja, após esboçar um experimento ou  ideia, expô-la , incansavelmente, as nuances que poderiam ser refutadas. Se se descobrir, por exemplo, que sol faz mal à saúde, tenta-se afastar todos os elementos que possam refutar essa ideia:  seria o sol, ou seria a claridade, independente da luz solar? seria o sol ou o sal da praia? Seria o sol ou ou a temperatura elevada? Enfim, nessa forma de pensar, surge o factual porém de braços dados com a ponderação - algo não muito frequente entre as pessoas. O exercício do pensador seria, então, pensar e tentar desfazer ou contestar o seu próprio pensamento. Utilizando de discussões da atualidade, se se é capitalista ou socialista, que elementos existem no meu opositor que poderia ser refutado? Isso criaria, o que os marxistas defendem, a ideia de "síntese”,  o produto do conflito. Popper, contudo, pondera: o marxismo e parte do capitalismo - o próprio freudismo -  são saberes dos quais  foram constituídos por "otimismo" epistêmico. Um exemplo: se me oponho ao marxismo, não o sou porque contesto, mas porque sou burguês; se me oponho ao capitalismo, não o sou por discordância teórica, mas porque tenho inveja do capital; se sou contra a psicanálise, sou um resistente.

O fanatismo seria então uma forma irrefutável de trazer uma suposta verdade.  Desse mesmo modo, pensam os delirantes; o delírio se constrói em falsa realidade, num cenário improvável ou impossível, uma "verdade” absoluta e irrefutável. O único sujeito que carrega as certezas do mundo são justamente eles, os delirantes. Vejamos o que o personagem de Cervantes nos traz:


— A aventura vai encaminhando os nossos negócios melhor do que o soubemos desejar; porque,vês ali, amigo Sancho Pança, onde se descobrem trinta ou mais desaforados gigantes, com quem penso fazer batalha, e tirar-lhes a todos as vidas, e com cujos despojos começaremos a enriquecer; que esta é boa guerra, e bom serviço faz a Deus quem tira tão má raça da face da terra.
— Quais gigantes? — disse Sancho Pança.
— Aqueles que ali vês — respondeu o amo — de braços tão compridos, que alguns os têm de quase duas léguas.
— Olhe bem — disse o escudeiro — que aquilo não são gigantes, são moinhos de vento; e os que parecem braços não são senão as velas, que tocadas do vento fazem trabalhar as mós.

— as coisas da guerra são de todas as mais sujeitas a contínuas mudanças; o que eu mais creio, e deve ser verdade, é que aquele sábio Frestão, que me roubou o aposento e os livros, transformou estes gigantes em moinhos, para me falsear a glória de os vencer, tamanha é a inimizade que me tem; mas ao cabo das contas, pouco lhe hão-de valer as suas más artes contra a bondade da minha espada.

 (Dom Quixote de La Mancha, Miguel de Cervante 1547-1616)

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