domingo, 31 de maio de 2015

Sobre os "terrivelmente normais" do cotidiano

Há pouco mais de uma semana se  comemorou  os 70 anos do final da Segunda Guerra Mundial, uma tragédia, aparentemente distante da nossa realidade, um momento lamentável da história. De fato, pensar que em tão pouco tempo teria ocorrera o genocídio, praticamente sem precedentes na história,  em razão da "Solução Final" ou da "questão judaica"-  projeto  nazista  que exterminou milhões de judeus em campos de concentração  é inacreditável.  Hoje,  assistimos a esse acontecimento como algo remoto, impensável ou fora de nossa realidade, e reprovável -  quiçá resta defensores em grupos  neonazistas. 

    
Diversas discussões sobre o nazismo tem se estabelecido desde a Segunda Guerra, desde as “explicações” sociais  às especulações  psicológicas da mente de seus assassinos - a ideia de "psiquiatrizar" a crueldade humana,  como se, a maldade fosse uma forma de adoecimento esta na moda.  Na verdade, hoje essa moda de psiquiatrizar ou psicologizar os eventos da  natureza humana se estende à tristeza, à infelicidade, à índole,  à riqueza, à pobreza, à obesidade, à desatenção, ao emagrecimento. A mente  nazista, dentro desse panteão de eventos psíquicos, não poderia ficar de fora,  pois envolvem intrigantes estudos das personalidades doentia dos seus líderes. Seriam psicóticos? psicopatas? Seriam seres humanos? enfim, Hannah Arendt ,num ousado pragmatismo, por ocasião do julgamento do nazista Eichmann, fez  a seguinte afirmação: "são pessoas terrivelmente normais" Arendt  discorre no livro "Eichmann em Jerusalém" que comportamentos desviantes não justifica o fato. Esses sujeitos eram cidadãos que levavam vida normal, influenciados pela doutrina/filosofia do nazismo que são, entre outros, a defesa da eugenia, do estado totalitário e nacionalista.  dentro dessa doutrina, os atos cometidos não eram cruéis, mas obedeciam  a nova "visão de mundo". A crueldade, nesse contexto, não é de motivação pessoal, mas é um modo de pensar a  humanidade. 

Para os que acreditam que essa doutrina restringiu-se a uma caricata minoria de pessoas que utilizaram a suástica e admiraram HitlerMussolini, e mais adiante Franco e Pinochet trago más notícias.   O mundo contemporâneo invade-se em pensamentos semelhantes. Mesmo com aversão as palavras nazismo e fascismo, os princípios eclodem aqui e ali por pessoas que ganharam notoriedade nas redes sociais. São cidadãos comuns, eventualmente, uma celebridade, que trazem nas suas  “opiniões” pessoais, ideias carregadas de preconceitos, raciais, religiosos, sexuais. Vẽ-se com alguma frequência  elogios à linchamentos, a  grupos de extermínio, a ditadores. recentemente  um professor universitário recomendou o estupro a uma jornalista. O pensar fascista ou nazista é mais sutil e mais não declarado do que imaginamos e se mostram mais na vida privada, no "cá entre nos", do que em  ambientes cerimoniosos.  Nas redes sociais o discurso privado se alardeia 

  
O interessante livro da historiadora Elizabeth Roudinesco, "Perversão a parte obscura de nós mesmos" , que faz um levantamento histórico da perversão humana. Ao contrário de uma descrição puramente psicologizante ou patologizante, a autora põe a perversão como parte da natureza do humano, e  acrescenta-lhe  elementos sociopolíticos. A ideia da "Solução Final", assim como a descrição de outros personagens da história da crueldade são minuciosamente discutidos. Enfim, ma leitura recomendadíssima.



Marcos Creder   


















terça-feira, 26 de maio de 2015

CATAVENTO



O que me vês em teus olhos
agora que me vês depois de tantos anos?

Para onde foram a palidez de minha face
e o branco desencarnado de nicotina
dos dentes sorridentes que hoje já não trago?


Peço-te desculpas se nestes lábios
que os teus nunca beijaram,
e que um dia te sonegou o calor
adocicado da minha juventude,
resta apenas o crepuscular adeus
dos meus malfadados desejos.

Perdoe-me ainda a resignação que carrego,
mas ela não é minha e nem me pertence:
ela é do acumular do tempo
que foi me encobrindo de cinzas,
modelando-me de sobras
e que me deixou assim:
como uma assombração perambulante
a se diluir de velhos outroras.

Não penses que já não sou eu
por detrás desta pele enrugada,
pois aqui ainda bate no peito
o mesmo coração pirralho
do tal menino e daquele rapaz.

Se já não canto é porque perdi a voz
na rouquidão gritada da penúltima festa
quando berrei em vão teu nome,
mas estavas distante como o amanhã do ontem
e o cerume dos anos em teus ouvidos
calou-me a fala no fundo da memória.


Agora que sou como o vento
a passar transparente pelos teus cabelos
talvez até não me notes,
pois não me faço mais acompanhar dos oceanos
que um dia por mim andaram
a acenar adeuses feito um catavento,
a rodopiar no tempo,
a rodopiar no tempo...

Joaquim Cesário de Mello

domingo, 24 de maio de 2015

ANTES QUE SEJA TARDE PARA SER CEDO







Em uma de suas músicas cantava Gilberto Gil: "o melhor lugar do mundo é aqui e agora". Sem dúvida, afinal é o lugar onde estamos vivendo agora, este presente fugidio e tão repentinamente breve. E quando o aqui e agora for lá e então?, poderia indagar alguém. Quando o aqui e agora - responder-se-ia - for lá e então, então estaremos no imediato seguinte aqui e agora que continuará sendo o lugar em que estamos vivos e, portanto, é o melhor lugar do mundo. O passado e o presente não existem, a não ser no presente que a partir dele nos lembramos do ontem e sonhamos com o amanhã. Nossas memórias e nossas esperanças nos invadem à consciência quando alargamos o presente além do campo apenas perceptivo. O passado está antes de mim na mesma proporção que o futuro está depois de mim. Em termos agostinianos, no tempo da minha narração (onde a alma vai e volta) sou o futuro que ainda não sou e o passado que já não sou.
     Calma, gente! num surtei não. É que estou a me devanear, alongando-me aos meus confins universais que começa lá de onde vim e haverá de terminar onde não sei se chegarei. Procuro-me em um extremo a outro, e até este exato instante e aqui e agora apenas encontrei o que já dizia Sartre quando dizia: "viver é isso: ficar se equilibrando o tempo todo, entre escolhas e consequências". Equilibro-me, pois, entre dois Joaquins, aquele que nunca fui e aquele que jamais serei. Neste espaço curto de algumas décadas estou construindo uma história que aos poucos, no aumentar de minhas lendas, recordações e sonhos, vai se liquidificando no transitar passageiro minha momentânea existência. Sei que mais pra lá de hoje tudo isso que me forma e me formou será esquecimento. 
     Agora o que faço é dialogar comigo. Compartilho. Da cartola de minha alma retiro um poema de Fernando Pessoa e me recito:

No breve número de doze meses
O ano passa, e breves são os anos,
                Poucos a vida dura.
Que são doze ou sessenta na floresta
Dos números, e quanto pouco falta
                Para o fim do futuro!
Dois terços já, tão rápido, do curso
Que me é imposto correr descendo, passo.
                Apresso, e breve acabo.
Dado em declive deixo, e invito apresso
                O moribundo passo.



Resultado de imagem para tempoO moribundo passo. Nele até agora não pisei; meramente um pouco mais dele me aproximei. E enquanto isso o que farei? Haverei de durar até lá chegar, e vou vivendo. Vivendo não a métrica do tempo, mas o tempo da vida. Abdicar dos relógios que mede os minuto e sorver o minuto a cada minuto.
Resultado de imagem para eternidadeAlguém já disse que o futuro é contra nós. Não o amanhã das esperanças, porém o depois dos amanhãs, o anoitecer das expectâncias e da duração das substâncias. Por isso às vezes me flagro roubando do hoje o que posso, afinal para que aguardar viver mais tarde o que posso viver agora se no mais tarde de mim nada me restará, nem meus relógios e seus afiados ponteiros agudos. Minha perpetuidade encontra-se aprisionada no presente. Sou um quase interminável presente que se estende pela métrica dos dias, até o instante em que chegará um novo presente no qual não terei mais passado nem futuro, lembranças ou sonhos.
Resultado de imagem para Matteo PuglieseSimone Weil já dizia que o tempo destrói o que é temporal. Somos temporais e passageiros. Em minha estrada - esta que a vida me permitiu percorrer e que ainda percorro - deixo atrás um Joaquim que não consegui ser. Receio, temo e me inquieto se lá na frente não terei deixado um Joaquim de agora que também jamais conseguiu ser. O que serei, pois, do que neste instante não sou? Chegará o dia em que finalmente tomarei a decisão de ser eu mesmo, seja lá o que isso possa ser? Terei - como mais uma vez disse Pessoa - a tranquila posse de mim e, então, nascerei de fato como um raio a deslumbrar-me de lucidez? Renunciarei esta roupa que hoje me encobre? Reporto-me, e de delas faço minhas, às palavras do poeta Mário de Sá-Carneiro: "eu não sou eu nem sou os outros,/Sou qualquer coisa de intermédio". Aquém de mim habita-me um potencial; além de mim uma realização que ainda não se fez. Nietzsche já dizia que somos um ponte, uma passagem e um declínio. 
Resultado de imagem para finitudeA temporalidade humana é impossível de eternidade, afirmava Santo Agostinho. A eternidade a Deus pertence. Como humanos estamos presos à temporalidade. Tempo é por definição passagem e mudança. O tempo da vida, da vida terrena, é métrico, enquanto a eternidade é inumerável e incomensurável. A eternidade, assim como Deus, reflete Agostinho, está acima de todo o tempo.
Resultado de imagem para eternidadeE o que faço eu de mim, agora que sei que não sou eterno? O tempo é breve, consume-me. Como escreveu Marcel Proust, "os dias talvez sejam iguais para um relógio, mas não para um homem". Quanto tempo ainda tenho, quanto tempo ainda me resta? Já tenho em minha biografia tantas páginas erradas e viradas. Sobram-me aquelas que ainda nada escrevi. E o que escreverei e com qual caligrafia formatarei o restante de minha história? Se o tempo é - como menciona Jorge Luis Borges - a substância de que sou feito, então que eu faça de mim o Joaquim que nunca fiz desta areia que me ficou no outro lado da ampulheta.
Resultado de imagem para tempo

Na voz de Ricardo Reis fala Fernando Pessoa: "tão cedo passa tudo quanto passa". Quando nasci entrei no tempo. A manhã corre rápido e a noite termina cedo. Quando eu sair do tempo e for para a eternidade da minha inexistência, espero deixar o legado dos meus resíduos dias. Logo não tarda e serei nada, logo eu que sonhei ser quase tudo. A infância findou e não me fiz astronauta. Cruzei a juventude sem medalhas e pódios. Em breve, já na próxima esquina, terminarei a travessia da maturidade. Sonho sonhos de Perseu a degolar o tempo antes que seja tarde. Mário Quintana já dizia que "o tempo é uma invenção da morte". É preciso e urge reinventar-me. Logo, antes que seja muito tarde para ser cedo. Logo, antes que eu vire poeira a me misturar na imensidão infinda do universo inteiro. Logo...


Joaquim Cesário de Mello