terça-feira, 26 de maio de 2015

CATAVENTO



O que me vês em teus olhos
agora que me vês depois de tantos anos?

Para onde foram a palidez de minha face
e o branco desencarnado de nicotina
dos dentes sorridentes que hoje já não trago?


Peço-te desculpas se nestes lábios
que os teus nunca beijaram,
e que um dia te sonegou o calor
adocicado da minha juventude,
resta apenas o crepuscular adeus
dos meus malfadados desejos.

Perdoe-me ainda a resignação que carrego,
mas ela não é minha e nem me pertence:
ela é do acumular do tempo
que foi me encobrindo de cinzas,
modelando-me de sobras
e que me deixou assim:
como uma assombração perambulante
a se diluir de velhos outroras.

Não penses que já não sou eu
por detrás desta pele enrugada,
pois aqui ainda bate no peito
o mesmo coração pirralho
do tal menino e daquele rapaz.

Se já não canto é porque perdi a voz
na rouquidão gritada da penúltima festa
quando berrei em vão teu nome,
mas estavas distante como o amanhã do ontem
e o cerume dos anos em teus ouvidos
calou-me a fala no fundo da memória.


Agora que sou como o vento
a passar transparente pelos teus cabelos
talvez até não me notes,
pois não me faço mais acompanhar dos oceanos
que um dia por mim andaram
a acenar adeuses feito um catavento,
a rodopiar no tempo,
a rodopiar no tempo...

Joaquim Cesário de Mello

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