domingo, 5 de outubro de 2014

Um Túnel





Depois de ler o último artigo de Joaquim Cesário que discorreu sobre as artes, a obra de Hopper em especial,  pus-me a pensar sobre os motivos de termos criado esse blog. Gostamos de arte, literatura, teatro. Somos profissionais de psiquiatria e psicologia. Juntamos, então, nossos ofícios aos nossos interesses.

A ideia de relacionar saberes científicos com as artes é interessante, mas não é original. Na verdade, os poetas da antiguidade clássica e medieval eram também filósofos e cientistas - e o que hoje chamamos de “ciência” no passado conceituava-se por construções hipotéticas, muitas vezes, de caráter intuitivo e religioso. Com chegada da modernidade e da ciência moderna, iniciou-se, por assim dizer, uma gradual separação entre os saberes filosóficos e o científicos, a arte por sua vez se posicionou próximo à filosofia.  

Ainda no Renascimento tínhamos o exemplo, conhecido por todos, de Leonardo da Vinci: inventor, pintor, poeta, músico, escultor, botânico, arquiteto, matemático. Hoje encontramos bons sujeitos com uma ou duas habilidades que se possa destacar. Embora tenhamos avanços  significativos da ciência super-especializada, as atividades  pluridisciplinares ainda ajudam a criar uma visão ampliada e privilegiada de fomas de pensar o mundo. Exemplos de saberes que foram construídos à partir de inspirações artísticas estão na arquitetura do século XX, especialmente de Le Corbusier, que fez com que o cálculo estrutural estivesse a serviço do belo e do monumental. A física quântica e o relativismo deram substrato aos poemas simbolista. A psicanálise é um bom exemplo. Freud utilizou, como fonte para construção dos fundamentos da psicanálise, de obras literárias e teatrais - utilizou mais de literatura que da medicina que o formou. Há uma interlocução comum entre a atividade artística e as ciências. Trilhei por caminho semelhante.

Dei aulas por quase vinte anos nas disciplinas de Psiquiatria, Psicopatologia e Psicossomática em instituições de ensino superior, e suponho que, se não fosse o meu interesse pela arte e literatura, as minhas aulas seriam mais enfadonhas do que são normalmente. Dar aula é antes de tudo repetir e, imagine-se, prezado leitor, a cada seis meses, retomando os mesmos temas com o mesmo tom de voz, os mesmo seminários, as mesmas avaliações. Sei que estou sendo simplista, pois há diversas maneiras de se evitar repetições na docência. Mas os ofícios tendem a se repetir com o tempo, ate mesmo os mais criativos. Penso que a arte foi a maneira que encontrei para  subverter a repetição. Há alguns anos venho introduzindo textos e livros fora do contexto especializadono ambiente de sala de aula. Indico ficção, romances, ensaios, peças teatrais, imagens de pinturas. Os casos clínicos se misturavam com personagens da ficção, do cinema, do teatro. Percebi que as expressões artísticas podiam trazer informações tao importantes quanto um livro especializado. Pude perceber na experiencia e docência que os sintomas psicóticos, por exemplo, são descritos com riqueza de detalhe num conto de Gógol, iguais ou superiores a alguns manuais de psiquiatria, que um sintoma depressivo se expressa melhor num quadro de Picasso ou de Lucien Freud que num capítulo de transtornos afetivos, ou que o ciúme delirante ou obsessivo mostrar-se mais realista em Otelo (de Shakespeare) que num rol de sintomas paranóides descritos em textos de psicopatologia.

Diversifiquei as atividades acadêmicas e vi alunos entusiasmados com o saber da psiquiatria relacionando-o, por exemplo, a personagens da ficção. A literatura de ficção traz uma vantagem importante perante o texto técnico: a habilidade estéticas dos escritores com a narrativa, capta o "clima" e revela a empatia com o sofrimento humano. O romance "o Túnel" de Ernesto Sábato, nos mostra isso: traz a narrativa de uma paixão incontrolável, beirando ou transbordando em patologias, sem aparente razão, entre um pintor e uma mulher desconhecida. O enigma: o olhar singular da desconhecida para seu quadro. A partir desse olhar, o livro se desdobra na experiência de - parafraseando Havelock Ellis - vastas emoções e pensamentos imperfeitos, trazendo à tona as dissonâncias e os equívocos que permeiam as relações humanas.

Enfim, são motes como esse - entre diversos motes - que provocou um encontro da arte com o saber "psi", cavei esse túnel sobre o muro cartesiano. Um dos destinos que nos levou a esse " buraco" são as páginas desse blog.

Marcos Creder

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