domingo, 12 de outubro de 2014

HOMO NORMALIS







O homem normal é uma ficção, ele não existe. Normal aqui entendido como alguém plenamente saudável em termos psíquicos. É como diz o dito: "de médico e de louco todos temos um pouco".
Quem não tem uma neurosezinha aqui e acolá? Quem, de vez em quando não TEM seus xiliques, medos infundados, compulsividades, ideações invasivas, manias e tem algum instante ou momento algo meio tresloucado? Porém, não é por se misturar leite com manga que a pessoa é psicologicamente doente ou transtornada mentalmente. Doença ou transtorno propriamente ditos são uma coisa, não ser completamente perfeito e sem falhas, defeitos e vazios é outra. Um homem assim tão normal é parecido como um homem totalmente feliz. É como escreve Tolstói, "todas famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira". Se uma pessoa for muito, mas muito, mas muito mesmo normal, desconfie. Vai vê ele é um normopata. 
Um normopata é aquele que em sua superfície não tem nenhum conflito consigo mesmo e com a vida, com o mundo e com as pessoas. O termo normopata foi introduzido por Joyce McDougall em seu texto chamado "Em defesa de uma certa anormalidade". Uma configuração psíquica excessivamente normal, diz McDougall, é uma normalidade estereotipada, uma hipernormalidade e, por isso mesmo, falsa. Acaba sendo uma espécie de defesa em perceber em si seus conflitos e lidar com eles. Se existir uma pessoa assim normalíssima, ela jamais fará uma mínima e qualquer transgressão, ou botará o pezinho um centímetro sequer além dos estreitos espaços de sua normalidade aprisionante, visto ser ela um conformista extremo. Sim, poderá retrucar o leitor, mas há gente que é certinho demais, politicamente correto demais. Pode ser que no fundo no fundo ela seja é tarada por ser normal. Aí o termo toma outra configuração: normofilia. Um normofílico é na verdade um normopata, haja vista estarmos no âmbito das parafilias. 
Uma vez eu atendi um cara que dizia não ter nada lhe incomodando. Que estava de bem com a vida, o trabalho, com a família, sua sexualidade, com sua vida afetiva e amorosa... enfim, o que trazia ele a um consultório de psicologia clínica? - perguntava-me eu. Demorei um pouco pra entender que ele precisava de um expectador pra tamanha e rara felicidade. Sua normalidade parecia ser entediante, pois ele não pendia momento algum seja pra direita seja pra esquerda. Ele vivia ali em um justo meio. Ainda hoje tenho cá minhas dúvidas: se ele era um exibicionista de sua normalidade, ou eufórico. Pois é, vai ver que pra se ser um cliente em psicoterapia tem que se ser doente ou sofrente. Se não for a gente "adoece" ele. 
Brincadeiras à parte, é como afirma o poeta Mário Quintana: a linha curva é o caminho mais agradável entre dois ponto; a linha reta é uma linha sem imaginação. Se normalidade nos leva à retidão, uma hipernormalidade é uma reta infindável. Sou de opinião que até a normalidade tem que ter seus limites. Pense em um sujeito irrepreensível. Ele não é apenas um sujeito chato, mas um sujeito apagado. Aliás nem sujeito é, na acepção da palavra, visto ser aquele que imobilizado na reta é incapaz de dar um passo em falso qualquer. Uma criança que nunca roubou um bombom nas Lojas Americanas, uma manga no pé do vizinho, que nunca brechou a mulher do próximo, que nunca cometeu uma falta em uma pelada, que jamais trapaceou em um jogo de cartas, que não sabe o quer é filar em prova ou gazear uma aula.
Pessoas assim são como se fossem robotizadas, isto é, comportam-se como se espera dela e não o que autenticamente pode ser. Na normatopatogênese desses indivíduos desprovidos de serem verdadeiramente sujeitos e não objetos de expectativas sociais e/ou alheias, encontramos aquilo que Winnicott denominou de "Falso Self". O Falso Self é uma organização psíquica na qual a normalidade é aparente, uma fachada. Como diz Winnicott são indivíduos tão firmemente ancorados na realidade objetiva que estão doentes em sentido oposto, ou seja, perdem o contato com o mundo subjetivo. Dada as devidas proporções foi o que talvez também quis dizer o poeta Mário Quintana quando disse que a lucidez é a loucura em sentido contrário. O normatopata, que faz menção McDougall, é uma personalidade carente do fator subjetivo e da capacidade de introspecção, prejudicado em externalizar seu "Verdadeiro Self". São aversos em alimentar o elemento subjetivo da vida. São, ainda nos dizeres de McDougall, "indivíduos doentes de sua própria normalidade".
Outro que questiona essa tal de normalidade é Jung quando afirma que "ser 'normal' é o ideal dos que não têm êxito, de todos que se encontram abaixo do nível geral de adaptação". A ênfase aqui é dada a quem evita confrontos por necessitar enormemente integrar-se a grupos sociais. Há um conformismo exacerbado e extremo, tanto pelas regras sociais quanto em corresponder a uma idealização social. Lembremos que uma "normalidade normal" deve ser traduzida tanto em sentimentos de bem-estar consigo próprio quanto com os outros. Normal em sentido de equilíbrio e autenticidade implica tanto comunicar-se com pessoalidade quanto compreender e empatizar. É alguém que consegue utilizar seus recursos e adaptá-los aos inúmeros contextos de vida. É saudável haver o sentimento de pertença, assim como é igualmente saudável saber se diferenciar, individualizar-se. Nos não somos espelhos para apenas refletir o que o mundo externo quer de nós. Somos também dotados de desejos e singularidades. O equilíbrio passa de alguma forma por ambos.
A falta de originalidade, a passividade acrítica e o excesso de mediocridade e conformismo pode nos indicar uma normalidade opressora de uma individualidade e de um sujeito inibido pela couraça de ser sempre normal como se espera que deva ser uma pessoa normal. Desconfiemos, pois, de alguém muito normal, sem conflitos e sem problemas. À primeira vista: de bem com a vida. Jamais haverá ele ou ela de pedir ajuda, afinal ele não sofre e não tem queixas. Um pouquito de rebeldia e transgressão, porém, não faz mal a ninguém. Pelo contrário, faz com que o normal seja aquele que sabe ser diferente e sabe lidar com as diferenças. Ou como escreveu o dramaturgo Bernard Shaw: "precisamos de algumas pessoas malucas, vejam só para onde as pessoas normais nos levaram".
É, ser normal não parece nada fácil. 

Joaquim Cesário de Mello

Um comentário:

R. Lima disse...

“Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca convivi com pessoas muito ajuizadas” (Nise da Silveira)
Portanto, estou de alta!!! Não quero deixar de ser apaixonante (-: