domingo, 28 de abril de 2013

O ONTEM VISTO DE HOJE



     (aos atuais e futuros filhos) 



      Quem nós somos se confunde com nossas histórias. É a história pessoal de cada um que nos individualiza, nos singulariza e nos identifica. Somos um feixe de acontecimentos, lembranças, experiências e vivências, e tudo isto junto nos faz únicos porque lhes atribuímos significados. Um mesmo evento, episódio ou fato são valorizados, sentidos e provados de maneira particular e pessoal por cada pessoa, cada individuo. O escritor Érico Veríssimos (todos da minha geração leram ou foram obrigados pela escola e pelo vestibular a ler Érico Veríssimo) em seu romance “O Resto é Silêncio”, ao narrar o suicídio de uma jovem, presenciado por vários personagens, narra e descreve as várias reações de cada um. O fato é um só (o suicídio), mas o impacto sobre as pessoas são diversos. O cineasta japonês Akira Kurosawa é ainda mais contundente em seu filme “Rashomon” quando, através do recurso fílmico do flashback, expõe os relatos divergentes de quatro testemunhas de um crime. É, e são, como se fossem quatro histórias diferentes. Não é à toa que em Direito sabe-se, embora se aceite como meio probatório, o quanto é passível de falibilidade a prova testemunhal.
                O filósofo político Noberto Bobbio em seu livro “O Tempo da Memória” escreveu com propriedade no alto dos seus 87 anos que “somos o que lembramos”. Mas podemos nós fiar e acreditar cegamente em nossas memórias e lembranças? Saibamos, de antemão, que nossas memórias podem ser auto-enganativas, afinal se chamamos o psiquismo de mente é porque ele mente. Mas não, nem necessariamente, porque sejamos mitomaníacos, mas sim, como diz o poeta Walt Whitmam, quando escreve: contradigo-me? Pois bem, então me contradigo. Sou extenso, contenho multidões.
                          Nos fazemos como pessoa dentro de nós e nos descobrimos dentro de nós, porque desde logo e cedo estamos inseridos no mundo que iremos aos poucos conhecendo. E este mundo está repleto de situações e acontecimentos, e no tatear titubeante do caminhar pela vida mundo a fora, vamos simultaneamente nos construindo como pessoa ao tempo em que vamos experienciando o mundo. A pessoa de cada um e o mundo de cada um são a dupla face de uma mesma moeda.  
           Aqui e acolá o que nos acontece vai deixando marcas que se somam ao jeito de ser do ser que se edifica. Cada evento em si tem lá sua importância, mas em muito dependerá da nossa subjetividade, isto é, do significado, da significância e das repercussões emocionais e suas reverberações em nossa alma e psiquismo. Não somos um mero acumular de episódios e fatos ocorridos. Somos uma mistura indelével de percepções, sensações e atributos, com os quais damos interpretações às circunstâncias e aos acontecidos.
                A história pessoal de cada indivíduo humano não é tão somente as experiências deste frente ao mundo físico, mas é também, e principalmente, uma realidade interpessoal onde através do convívio com os outros se constrói um ser por meio do diálogo entre o que se percebe e o que se compreende. E assim, a história de cada um de nós é feita do significado que damos a ela, ou seja, nossa história pessoal é o modo pessoal como construímos nossa história.
                   Nossa narrativa autobiográfica não é em si uma história realística, pois a mesma é bastante colorida pelas emoções, fantasias e desejos. Organizamos nossas histórias pessoais por meio de visões pessoais sobre a mesma. Somos uma versão de nós mesmos. Para facilitar, portanto, um pouco o até aqui explanado, ouçamos Freud quando afirma que pode-se questionar se temos mesmo alguma lembrança proveniente de nossa infância: as lembranças relativas à infância talvez sejam tudo o que possuímos. Nossas lembranças infantis nos mostram nossos primeiros anos não como eles foram, mas tal como apareceram nos períodos posteriores em que as lembranças foram despertadas. Nesses períodos de despertar, as lembranças infantis não emergiram, como as pessoas costumam dizer; elas foram formadas nessa época. E inúmeros motivos, sem qualquer preocupação com a precisão histórica, participaram de sua formação, assim como da seleção das próprias lembranças.” 
                        Atribuir novos significados ao passado requer mudar a visão que temos de nós mesmos e de nossas biografias. Isso é possível porque os significados que damos aos acontecimentos vividos e as experiências vividas em muito depende do filtro pelo qual vivemos e registramos. Olhando para trás, e mudando o filtro, podemos alterar tais significados, afinal não podemos passar uma “borracha” e simplesmente deletar o passado, pois este está entranhado em nós, gostemos ou não. George Santayana, poeta e filósofo espanhol, já dizia que quem não recorda o passado está condenado a repeti-lo”.

                        Lembremos ainda que a memória humana, além de plasmada pelas impressões, é igualmente seletiva. É como menciona o professor Wolney Honório Filho: “a memória vem elegantemente acompanhada do esquecimento”. E o esquecimento – não esqueçamos de Freud – é um recurso psíquico frente a vivências difíceis e conflitos não superados. Às vezes tendemos a “apagar” parte de nós e de nossas histórias do que reconhecê-las dolorosamente como parte integrante de nossas personalidades. A mente humana, assim, às vezes, prefere o silêncio em si mesma.


Sim, mudando um pouco o ângulo já mudamos um pouco até nós próprios. Duvida? Então tente olhar pro passado e veja, por exemplo, seus pais com maior compreensão de suas humanidades e juventudes, e destile de suas lembranças mágoas e rancores. Aposto que eles vão continuar ali no mesmo lugar do seu passado, mas provavelmente eles não estarão agora lhe influenciando ou machucando tanto, e se alguma lágrima escorrer em sua face ela não terá o antigo sabor salgado misturado com acre e fel.
                Se a partir do hoje mais maduro olharmos o ontem com estes olhos mais sábios de agora, provável que possamos entender melhor que as falhas e erros parentais não foram advindos de pais onipotentes, grandiosos e maldosos, mas de humanos assustadiços, carentes e contraditórios, e que, embora fossem os adultos da nossa infância, eram também crianças assombradas com outras crianças no colo. Homens e mulheres que escondiam meninos e meninas cujos esconderijos não eram impermeáveis, pois a vida – já encenava Bergman – penetra tudo. Não, não. Nem sempre tivemos pais que repudiaram nossos prematuros afetos, mas que titubearam frente a eles. Muitas vezes quisemos amor e eles nos devolveram angústias de suas próprias primitivas histórias.
                Hoje, se pudéssemos voltar pra trás, de lá de onde viemos, erraríamos outros erros, evitaríamos outros medos, pediríamos desculpas de outras coisas, amaríamos de outras maneiras e escreveríamos outros textos com outros teores.



                 Hoje, relendo minha própria história, reencontro-me com meus pais de outro jeito. 
Joaquim Cesário de Mello


quinta-feira, 25 de abril de 2013

VALE A PENA VER DE NOVO



DA PRECARIEDADE DA VIDA E OUTRAS FINITUDES



     Somos minúsculos frente ao curso da vida. Temos hábito de dizer que a vida passa, mas a vida, por já existir antes de nós e depois de nós, ela não passa para o indivíduo, é o indivíduo que passa por ela. A finitude nos acompanha desde o nascimento. Nascer, por si mesmo, já representa um morrer. Quando um feto é expelido ou retirado do útero morre-se no parto um estilo de vida (uterino) e um mundo (aquático); nasce-se uma nova maneira de se viver (extrauterina) diante de um mundo até então novo e diferente (aéreo). Vai-se respirar através dos pulmões pela primeira vez, vai-se sentir fome, calor e frio, vai-se começar a ver a luz pela primeira vez, vai-se chorar e o mundo nunca mais será como antes.
               Perdemos inicialmente o útero, após o seio e o colo. No caminhar da existência muitas outras perdas ocorrerão, desde a perda da infância, do corpo infantil e dos pais idealizados. Sequencialmente perde-se a adolescência, a juventude e a vitalidade. Perde-se objetos, lugares, momentos, pessoas, funções e assim se vai, ou melhor, assim vamos pela vida afora. Até que chega o instante derradeiro em que se perde a própria vida e, finalmente, se morre. Literal e vivencialmente é como diz o poeta: “isto o que ganhei: essas perdas. Isto o que ficou: esse tesouro de ausências”.
            A memória é o eixo central na exiguidade de nossas existências, afinal somos hoje quem somos graças a todas as nossas perdas e a capacidade humana de se ver e se recordar como uma continuidade de vida. É como disse o também poeta pernambucano Manuel Bandeira: “com o tempo o coração da gente vai se transformando num cemitério”. Eu mesmo, certa vez, escrevi em uma crônica (O Homem à Margem da Cidade, in Cronistas de Pernambuco, Editora Carpem Diem/2010) caminhava agora pelas ruas com a inabalável certeza de que chegaria, afinal chegar era o prazer de depois partir. Pisava sem pressa o chão das calçadas e os asfaltos da cidade que era sua. Nela nasceu, cresceu e haverá um dia em que nela se enterraria. Quando por baixo dela viver, outros a pisarão com o mesmo cuidado com que pisa sua infância, seu passado, sua história... Os pés do adulto que o corpo leva trilham as pegadas do menino insone e traído”.
                Embora saibamos que tudo nos esvai como fumaça, tudo passa na voraz fugacidade do tempo, sonhamos ilusória e inutilmente com a permanência. Mas eis que vem, inexorável e sempre implacável, a transitoriedade ligeira do existir e nos deixa pasmos e nostálgicos como Manuel Bandeira em sua Evocação do Recife: “a casa de meu avô.../Nunca pensei que ele acabasse!/Tudo lá parecia impregnado de eternidade”. Somos todos, sem exceção, passageiros de uma vida que existida é somente passageira.
                Quanto mais se vive mais aumentam as lápides do cemitério do coração. Vamos aos poucos, dia após dias, convivendo mais com os mortos do que com os vivos. E se ainda assim, sobrevivermos aos nossos vivos, eles nos restarão como lembranças a compor o mosaico da memória. Em sua velhice o filósofo político italiano, Norberto Bobbio, escreveu que “somos o que lembramos”. Eu diria, complementando, que nossa alma é feita de sonhos, lembranças, ideias, desejos, sentimentos e perdas. Não há um ser humano qualquer que já não tenha passado por suas perdas. E ainda continuará passando.
                O psiquiatra e psicanalista alemão Erik Erikson foi um dos estudiosos da psicologia do desenvolvimento que mais contribuiu sobre o tema. Não se estuda Psicologia sem conhecer Erikson e é dele o destaque para as “oito idades do homem”. O crescimento psicológico se faz integrado com o ambiente social e cada etapa ou estágio nos prepara para os enfretamentos dos conflitos adaptativos inerentes à vida. O crescer é feito de perdas. Necessitamos elaborar satisfatoriamente nossas perdas para que o viver não nos pese de maneira depressiva. Necessitamos melhor lidar com as mudanças, as transições, as tristezas e seguir a vida. O luto nos acompanha seja por perdas reais, seja pela gradação de papéis (tais como: de solteiro para casado, paternidade, aposentadoria, etc.), seja pelo próprio envelhecer. O luto, como processo elaborativo das perdas, tem papel fundamental na vida humana.
                A vida humana, a vida de um indivíduo humano, é um instante. Um instante espremido entre duas escuridões, como refere o escritor russo Nabakov: “a nossa existência é um curto-circuito entre duas eternidades de escuridão”. Do breu uterino ao breu do túmulo. Este é o nosso percurso e caminho.
                Freud também nos deu sua contribuição no belíssimo texto Sobre a Transitoriedade (1915), quando relata um passeio com um amigo por um jardim. O amigo manifesta o desagrado e o incômodo com a finitude humana e Freud a partir desta conversa especula sobre “a exigência humana de eternidade”. Ensina-nos ele, no refletir sobre a caducidade do que chamamos belo, que é exatamente porque as coisas são transitórias que a amamos. Então passa a discorrer sobre o tempo que passa e o tempo que permanece, sendo este último não somente o tempo da memória e das lembranças, mas o tempo que só é tempo no tempo depois, isto é, o tempo do inconsciente. No conjunto inteiro de sua portentosa obra Freud distingue a consciência da inconsciência, e ao invés de que um leitor apressado sobre o tema possa pensar (o passado como um causador do presente) o que passa torna-se assim e então uma realidade psíquica, visto que o inconsciente é psiquicamente o lugar onde os tempos se amalgamizam.
                Sêneca (4 a.c.? – 65 D.c) é outro que dedicou parte de sua vida a se debruçar sobre o que ele chamou de “brevidade da vida”. Em cartas dirigidas ao personagem Paulino o filósofo pondera com sabedoria sobre a natureza finita da vida humana e a nossa relação com o rápido transcurso temporal da existência. A forma como utilizamos a fluidez do tempo que nos cabe é que a transforma em lamento ou fortuna. Escreve ele: “Não temos exatamente uma vida curta, mas desperdiçamos uma grande parte dela. A vida se bem empregada, é suficientemente longa e nos foi dada com muita generosidade para a realização de importantes tarefas. Ao contrário, se desperdiçada no luxo e na indiferença, se nenhuma obra é concretizada, por fim, se não se respeita nenhum valor, não realizamos aquilo que deveríamos realizar, sentimos que ela realmente se esvai”. Para Sêneca a vida pode até ser breve, mas o que a prolonga é a arte do seu uso.
                Ou como também nos ensina o mestre budista japônico-americano Gyomay Kubuseo -  mesmo velho Carpe Diem latino - : “quando o sol brilha, desfrute-o; quando a chuva cai, desfrute-a. Todas as coisas nesta vida – deixa que venham e deixe que se vão”. Tá, já sei o que está pensando meu porventura avulso leitor, que é fácil falar ou escrever, porém praticar e sentir são outros tantos. É vero. E aqui reside a nossa grande busca: viver a vida como um artista e fazer de cada instante o instante. Dessa forma, evitando me alongar demais, pois a vida tá passado e eu tenho uma cervejinha gelada me esperando e uma mulher a ser beijada, transformo a partir de agora este texto em passado com os versos do poeta pernambucano Carlos Pena Filho: “,,,lembra-te que afinal te resta a vida/com tudo que é insolvente e provisório/e de que ainda tens uma saída:/entrar no acaso e amar o transitório” (grifos nossos).

(publicado originariamente em 26/08/12)
Joaquim Cesário de Mello