quinta-feira, 25 de abril de 2013

VALE A PENA VER DE NOVO



DA PRECARIEDADE DA VIDA E OUTRAS FINITUDES



     Somos minúsculos frente ao curso da vida. Temos hábito de dizer que a vida passa, mas a vida, por já existir antes de nós e depois de nós, ela não passa para o indivíduo, é o indivíduo que passa por ela. A finitude nos acompanha desde o nascimento. Nascer, por si mesmo, já representa um morrer. Quando um feto é expelido ou retirado do útero morre-se no parto um estilo de vida (uterino) e um mundo (aquático); nasce-se uma nova maneira de se viver (extrauterina) diante de um mundo até então novo e diferente (aéreo). Vai-se respirar através dos pulmões pela primeira vez, vai-se sentir fome, calor e frio, vai-se começar a ver a luz pela primeira vez, vai-se chorar e o mundo nunca mais será como antes.
               Perdemos inicialmente o útero, após o seio e o colo. No caminhar da existência muitas outras perdas ocorrerão, desde a perda da infância, do corpo infantil e dos pais idealizados. Sequencialmente perde-se a adolescência, a juventude e a vitalidade. Perde-se objetos, lugares, momentos, pessoas, funções e assim se vai, ou melhor, assim vamos pela vida afora. Até que chega o instante derradeiro em que se perde a própria vida e, finalmente, se morre. Literal e vivencialmente é como diz o poeta: “isto o que ganhei: essas perdas. Isto o que ficou: esse tesouro de ausências”.
            A memória é o eixo central na exiguidade de nossas existências, afinal somos hoje quem somos graças a todas as nossas perdas e a capacidade humana de se ver e se recordar como uma continuidade de vida. É como disse o também poeta pernambucano Manuel Bandeira: “com o tempo o coração da gente vai se transformando num cemitério”. Eu mesmo, certa vez, escrevi em uma crônica (O Homem à Margem da Cidade, in Cronistas de Pernambuco, Editora Carpem Diem/2010) caminhava agora pelas ruas com a inabalável certeza de que chegaria, afinal chegar era o prazer de depois partir. Pisava sem pressa o chão das calçadas e os asfaltos da cidade que era sua. Nela nasceu, cresceu e haverá um dia em que nela se enterraria. Quando por baixo dela viver, outros a pisarão com o mesmo cuidado com que pisa sua infância, seu passado, sua história... Os pés do adulto que o corpo leva trilham as pegadas do menino insone e traído”.
                Embora saibamos que tudo nos esvai como fumaça, tudo passa na voraz fugacidade do tempo, sonhamos ilusória e inutilmente com a permanência. Mas eis que vem, inexorável e sempre implacável, a transitoriedade ligeira do existir e nos deixa pasmos e nostálgicos como Manuel Bandeira em sua Evocação do Recife: “a casa de meu avô.../Nunca pensei que ele acabasse!/Tudo lá parecia impregnado de eternidade”. Somos todos, sem exceção, passageiros de uma vida que existida é somente passageira.
                Quanto mais se vive mais aumentam as lápides do cemitério do coração. Vamos aos poucos, dia após dias, convivendo mais com os mortos do que com os vivos. E se ainda assim, sobrevivermos aos nossos vivos, eles nos restarão como lembranças a compor o mosaico da memória. Em sua velhice o filósofo político italiano, Norberto Bobbio, escreveu que “somos o que lembramos”. Eu diria, complementando, que nossa alma é feita de sonhos, lembranças, ideias, desejos, sentimentos e perdas. Não há um ser humano qualquer que já não tenha passado por suas perdas. E ainda continuará passando.
                O psiquiatra e psicanalista alemão Erik Erikson foi um dos estudiosos da psicologia do desenvolvimento que mais contribuiu sobre o tema. Não se estuda Psicologia sem conhecer Erikson e é dele o destaque para as “oito idades do homem”. O crescimento psicológico se faz integrado com o ambiente social e cada etapa ou estágio nos prepara para os enfretamentos dos conflitos adaptativos inerentes à vida. O crescer é feito de perdas. Necessitamos elaborar satisfatoriamente nossas perdas para que o viver não nos pese de maneira depressiva. Necessitamos melhor lidar com as mudanças, as transições, as tristezas e seguir a vida. O luto nos acompanha seja por perdas reais, seja pela gradação de papéis (tais como: de solteiro para casado, paternidade, aposentadoria, etc.), seja pelo próprio envelhecer. O luto, como processo elaborativo das perdas, tem papel fundamental na vida humana.
                A vida humana, a vida de um indivíduo humano, é um instante. Um instante espremido entre duas escuridões, como refere o escritor russo Nabakov: “a nossa existência é um curto-circuito entre duas eternidades de escuridão”. Do breu uterino ao breu do túmulo. Este é o nosso percurso e caminho.
                Freud também nos deu sua contribuição no belíssimo texto Sobre a Transitoriedade (1915), quando relata um passeio com um amigo por um jardim. O amigo manifesta o desagrado e o incômodo com a finitude humana e Freud a partir desta conversa especula sobre “a exigência humana de eternidade”. Ensina-nos ele, no refletir sobre a caducidade do que chamamos belo, que é exatamente porque as coisas são transitórias que a amamos. Então passa a discorrer sobre o tempo que passa e o tempo que permanece, sendo este último não somente o tempo da memória e das lembranças, mas o tempo que só é tempo no tempo depois, isto é, o tempo do inconsciente. No conjunto inteiro de sua portentosa obra Freud distingue a consciência da inconsciência, e ao invés de que um leitor apressado sobre o tema possa pensar (o passado como um causador do presente) o que passa torna-se assim e então uma realidade psíquica, visto que o inconsciente é psiquicamente o lugar onde os tempos se amalgamizam.
                Sêneca (4 a.c.? – 65 D.c) é outro que dedicou parte de sua vida a se debruçar sobre o que ele chamou de “brevidade da vida”. Em cartas dirigidas ao personagem Paulino o filósofo pondera com sabedoria sobre a natureza finita da vida humana e a nossa relação com o rápido transcurso temporal da existência. A forma como utilizamos a fluidez do tempo que nos cabe é que a transforma em lamento ou fortuna. Escreve ele: “Não temos exatamente uma vida curta, mas desperdiçamos uma grande parte dela. A vida se bem empregada, é suficientemente longa e nos foi dada com muita generosidade para a realização de importantes tarefas. Ao contrário, se desperdiçada no luxo e na indiferença, se nenhuma obra é concretizada, por fim, se não se respeita nenhum valor, não realizamos aquilo que deveríamos realizar, sentimos que ela realmente se esvai”. Para Sêneca a vida pode até ser breve, mas o que a prolonga é a arte do seu uso.
                Ou como também nos ensina o mestre budista japônico-americano Gyomay Kubuseo -  mesmo velho Carpe Diem latino - : “quando o sol brilha, desfrute-o; quando a chuva cai, desfrute-a. Todas as coisas nesta vida – deixa que venham e deixe que se vão”. Tá, já sei o que está pensando meu porventura avulso leitor, que é fácil falar ou escrever, porém praticar e sentir são outros tantos. É vero. E aqui reside a nossa grande busca: viver a vida como um artista e fazer de cada instante o instante. Dessa forma, evitando me alongar demais, pois a vida tá passado e eu tenho uma cervejinha gelada me esperando e uma mulher a ser beijada, transformo a partir de agora este texto em passado com os versos do poeta pernambucano Carlos Pena Filho: “,,,lembra-te que afinal te resta a vida/com tudo que é insolvente e provisório/e de que ainda tens uma saída:/entrar no acaso e amar o transitório” (grifos nossos).

(publicado originariamente em 26/08/12)
Joaquim Cesário de Mello

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