domingo, 21 de abril de 2013

O HOMEM ÀS AVESSAS


     




     O poeta é por natureza um psicólogo e o psicólogo é por ofício um poeta. Ambos buscam o por detrás das aparências, o profundo das superfícies. Ambos perscrutam o significado indelével e indizível das subjetividades e a desnudez dos sentimentos ocultos. Ambos xeretam o interior das coisas e no encontrar do impalpável transformam espanto em palavras, gestos e versos. Ou como escreve Mário Quintana, "ser poeta não é apenas dizer grandes coisas, mas ter uma voz reconhecível dentre todas as outras”. Seria diferente com o psicólogo? Afinal, ambos, são como nos dizeres de um outro poeta, Paul Éluard: "muito antes é poeta aquele que inspira do que aquele que é inspirado”. Ou o que nos ensina Jung não é pura poesia? (ou seria pura psicologia?): “Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta”.
                Ah, esses poetas e esses psicólogos! Entendem como poucos ou como ninguém que o homem, embora queira ser de ferro, é feito de carne e sonhos. E mais uma vez vou à procura de Jung, principalmente quando esclarece e afirma: “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”. Ah, como queria ser mais poeta! Ser mais psicólogo e ser mais eu do que eu! Passar de mim e ir às nuvens e conversar com meus anjos. Ah, por que não sou mais poeta? Por que não consigo ser mais psicólogo? Sou tão limitado de mim que chego até me assombrar dos profundos que desconheço. Cá dentro, onde rarefeitamente me visito, entendo o que canta Vinicius quando canta: “quem já passou por essa vida e não viveu/pode ser mais, mas sabe menos do que eu/porque a vida só se dá pra quem se deu/pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu.
                Sim, triste é aquele que vive sem poesia, pois não conhece a psicologia da vida e assim não vive, somente sobrevive. Quero a loucura lúcida de que fala Quintana, pois é certo, como diz Shakespeare, que “enquanto houver um louco, um poeta e um amante haverá sonho, amor e fantasia. E enquanto houver sonho, amor e fantasia, haverá esperança”. E a esperança – lembra-me Aristóteles – é o sonho do homem acordado.
                Ah, Deus, dê-me o arder da claridade na retina dos olhos ao invés do assossego acomodado e quieto das sombras. Quero escapar das cavernas platônicas e quero escutar o silêncio inquietante das pulsões - as vivas e as mortas. Deixar de lado o cotidiano e perambular tateante os corredores desiluminados do tempo, e me encontrar ali – eu e você – onde o tempo não tem tempo, e juntos nos abraçar em um abraço sem fim, tão infindável quanto o mais desejante dos desejantes desejos.
                É, Freud já sabia. Ele mesmo reconhece e afirma que “aonde quer que eu vá, eu descubro que um poeta esteve lá antes de mim”. Não há nada mais poético, pois, que ser psicólogo. Não o psicólogo burocrático, um barnabé da ciência, mas aquele que se depara com o verso quando enxerga e apalpa a alma. É no encontrar dos espíritos que o humano se revela. E é lá, onde minha alma toca a alma alheia e esta a minha, que nasce um poema. Se assim não fosse não versaria Florbela Espanca que ser poeta é “morder como quem beija”.
                Em psicologia se busca mais do que o sentido do que se pensa e das palavras, procura-se, feito quem cata, o sentir e seus sentimentos. O homem em toda sua humanidade é posto como que de cabeça para baixo. É adentrar através da alma como quem atravessa espelhos, seguindo coelhos. E assim o que é frugal se torna denso, o que é prosaico se torna homérico, o que é matéria se torna etéreo e o que é rasteiro e pedestre se transforma em assombro, sumo e espanto. Faz-se psicologia como quem converte prosa em verso. Assim, tanto o poeta quanto o psicólogo propõem a conversão do olhar.
               Para os gregos antigos a verdade se chamava Alétheia, e Alétheia é desvelamento. Não é à toa que a influência helênica na Bíblia é vista quando se afirma “e conhecereis a Verdade, e a Verdade vos libertará”, pois os gregos da antiguidade tinham em sua mitologia o rio Lete, em cujas águas quem delas bebesse ou tocasse experimentariam o total esquecimento. Também sequer é à toa quando Santo Agostinho em sua retórica platônica nos ensina: “não queiras sair para fora; é no interior do homem que habita a verdade”.
                O mistério só é mistério quando dele se desconhece. O pensador e poeta Níkos Kazantzákis nos fala sobre o andar inseguro por meio do invisível:
“Ouço uma ordem dentro de mim:
- Cava! Que vês?
- Homens e aves, águas e pedras.
- Cava mais! Que vês?
- Idéias e sonhos, relâmpagos e fantasmas.
- Cava ainda mais! Que vês?
- Não vejo coisa alguma! Só a Noite, muda e espessa como a morte. Deve ser a morte.
- Cava, cava!
- Ai, não posso atravessar a muralha negra! Ouço vozes e prantos, ouço bater de asas do outro lado!
- Não chores! Não chores! Não é do outro lado! As vozes, os prantos e o bater de asas são o teu coração!"

O que é, pois, do homem que não olha a vida com olhos de poeta? O que ele vê quando vê uma folha caída de uma árvore? Uma folha caída de uma árvore. O que ele vê quando vê um óculos esquecido em um sofá? Um óculos esquecido em um sofá.  Ou quando vê um outro chorando? Uma pessoa chorando. É isso o que ele vê: fenômenos e coisas, tão somente. Carece ele enxergar sentindo o imóvel e invisível que se esconde por detrás do evidente transitório da existência e de seus conteúdos. Os sutis e finos cordéis que nos movimentam e nos movem são imperceptíveis aos olhos do corpo e da face. É necessário ser poeta, filósofo e psicólogo (ou tudo isso junto e algo mais) para atravessar o árido deserto das aparências e encontrar o oásis encoberto da vida que só a alma pode encontrar.
                E por não querer ser um poeta de um mundo caduco, como dizia Drummond, vou ao quarto ao lado para de soslaio observar a mulher que dorme na cama junto ao espaço do meu vazio, e vê-la ali, absorta em seus sonhos, não como um corpo coberto de fronhas e lençóis, mas como puro sentimento.
                Ah, como queria ser mais poeta! Transformaria esta visão em poesia, e meus afetos em minha mais própria e mais íntima psicologia

Joaquim Cesário de Mello

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