quarta-feira, 29 de julho de 2020

HOLLYWOOD DREAMS


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Odiava a visita dos primos e dos vizinhos. Magro, frágil e tímido, era constantemente subjugado nas brincadeiras de força, enquanto os pais conversavam na varanda crentes de sua felicidade. Inferiorizado e humilhado buscava a supremacia nos estudos, o que lhe rendia elogios e medalhas. Não sabiam os adultos que os livros e os óculos eram sua armadura e seu escudo. Cultivava assim a inteligência, desertificando os sentimentos.

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Tão logo as luzes se apagaram encostou-se relaxadamente na poltrona acariciando-lhe os braços com a ternura de um recente enamorado. Mergulhado na negritude inicial aconchegou-se à escuridão como quem se recolhe a um colo feminino e sem cheiro, permitido-se oscilar impreciso por entre indefinidas sombras noturnas. Embora fosse tarde lá fora, deliciava-o a sensação embriagante e terna das noites artificiais, na ausência dos ruídos mundanos. Vingava-se assim das tardes e de suas solidões, assassinando-as com a obscuridade das trevas improvisadas.
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Seguro no abraço da cadeira, postou-se frente à imensa tela branca iluminada como se aguardasse a chegada de uma mulher amada. Os segundos que antecedem à ilusão eram vazios e lentos, porém necessários ao ritual da passagem que se sucedia. Os objetos, as coisas e as pessoas excluíam-se do redor, restando apenas a visão retangular dos sonhos acordados. Não havia mais ninguém, somente ele e os rostos próximos dos outros distantes. Despido do social, vestia-se de novas fantasias onde o pensamento se diluía em quimeras e desejos. Com que sonha o homem neste instante senão consigo próprio? – ele é feito de imagens e a tela é seu espelho e sua extensão. Flutuava para além de si, redescobrindo antigos afetos hibernantes.
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Para ele, pouco importava o filme ou a trama. O cinema era seu sepulcro e a sua sobrevivência. Detestava a claridade denunciante das filas e das salas de espera, onde casais trocavam carícias permitidas, ansiosos para se embrenharem no negrume anônimo das mãos e das coxas. A felicidade alheia inquietava-lhe, da qual se defendia desviando-lhe os olhos. Por isto levava sempre consigo um livro qualquer que lhe auxiliasse a distrair a atenção e a dor. Os livros são melhores que gente, costumava dizer, pois quando nos incomoda basta fechá-los, enquanto as pessoas cobram e sugam.

Nunca lhe fora difícil estar desacompanhado. Nascido filho único, reinara por inteiro em um quarto somente seu, cujos brinquedos amargavam a falta de outros toques. Houve momentos, é verdade, e não foram poucos, que aspirava irmãos com quem compartilhar o medo das madrugadas, porém, como Deus era surdo as suas preces silenciosas, inventara amigos imaginários a quem, assim como os livros, podia mudá-los tão logo enjoasse. Adormecia quase sempre cercado de cavalheiros, guerreiros e soldados.
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A vida começa na tela. Escorrendo o corpo pela cadeira, procura a melhor posição, inclinando a cabeça como quem repousa em travesseiros e seios. Sumido da tarde, dilui-se em cores múltiplas. Desaparecido do dia, confunde-se no piscar das fotografias. Não importa o filme ou a trama, o que importa é que o filme jamais acabe e lhe devolva a realidade tantas vezes sonegada.

Joaquim Cesário de Mello

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