domingo, 29 de setembro de 2019

TEMPOS GRÁVIDOS

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Define-se intolerância como incomplacência ou recusa de aceitação de diferentes opiniões, perspectivas ou pontos de vista. Com base em preconceitos a intolerância desemboca em discriminação e perseguição. Extremismos e radicalismos pipocam aqui e acolá gradativamente como espécies de evacuações purulentas de organismos sociais enfermos. Pessoas e certos grupos sociais cada vez se acham detentores da verdade e em nome dela alcançam estados psicológicos de fervor excessivo e de irracionalidade crônica.

Delírios e paranoias se mesclam e se confundem com ideias e ideologias insensatas, alimentando e sendo alimentadas por um coletivo acrítico que é transformado em uma massa ignara que se auto-nutre de sua própria ignorância e credulidade quase pueril. Alguém já disse que o fanatismo é uma febre da alma. Em um sistema subjetivo fechado credor de sua verdade absoluta e irrefutável a visão maniqueísta e dicotômica de bem-mal se cristaliza feito crosta, levando ao surgimento de agressividades e ódios. A estreiteza mental predomina, e é aqui que reside o perigo. A História que o diga.
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O personagem bergmaniano, Hans Vergerus, alerta-nos: "qualquer um que fizer o mínimo esforço poderá ver o que nos espera no futuro. É como um ovo de serpente. Através das membranas finas pode-se distinguir o réptil já perfeitamente formado" (O Ovo da Serpente, filme de 1977). Arrogância, insolência, prepotência, soberba, facciosismo, paixão obstinada e cegueira intelectual e psíquica predominam progressivamente nos dias e espaços atuais em que vivemos. Doutrinas sectárias e exaltadas parecem retroceder a tempos medievais e obscuros. Verdadeiras guerras santas e cruzadas ideológicas contra tudo aquilo que não lhe é espelho não são apenas fenômenos passageiros e histéricos, mas sim sinais de recrudescimentos perversos que se escondem no fundo da alma humana desde à época imemorial e bíblica de Caim e Abel. Se um dia o mundo teve sua gênesis, com ela trouxemos a nossa triste capacidade de sermos estúpidos, egoístas e maléficos. Em nome de tantas divindades quantas maldades já não cometemos ao longo da História humana? 
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Progresso e ruína são duas faces de uma mesma moeda - escreve Hannah Arendt. Em um dos mais importantes livros do século XX, As Origens do Totalitarismo, Arendt mergulha na cena contemporânea da década de 50 para descortinar as estruturas de poder de dominação, baseadas em ideias abstratas e crenças de superioridades e supremacias. A experiência totalitária não é algo novo à experiência humana, afinal o mal nos acompanha como o pecado original para quem nele crê. E, como diz Arendt, "somente a ralé e a elite podem ser atraídas pelo ímpeto do totalitarismo; as massas têm que ser conquistadas por meio da propaganda". Não há corações conquistados sem cabeças conquistadas. E nada é mais fácil conquistar do que uma mente vazia ou esvaziada de reflexividade, criticidade e cultura humanista. É como diz o dito popular, cabeça vazia oficina do diabo. Entenda-se o uso aqui e cabeça vazia como um cérebro e mente sem muita atividade e ação, talvez como uma espécie de anorexia mental ou preguiça de pensar. Às vezes, penso, que também por raquitismo intelectual.
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Monólogos e não diálogos. Certezas e não dúvidas. Aquiescência conformista e não debates. Extremismos e não conciliações. Obsessões insanas e ausências de lucidez. Afinal, de onde vem tudo isso? Para uns do medo e da insegurança. Como disse Nietzsche, "o fanatismo é a única forma de força de vontade acessível aos fracos". Será? É do medo e da insegurança humana que brotam o fanatismo e a intolerância? Segundo o livro Faces do Fanatismo (Carlos Pinsky e Jaime Pinks/Orgs.), fanatismo é "a exaltação que leva indivíduos ou grupos a praticar atos violentos contra outras pessoas, baseados na intolerância na crença e verdades absolutas, para as quais não admitem contestação".
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A intolerância, o fanatismo e o extremismo radical de ideias muitas vezes já foi tema de cinema. O mais famoso dos filmes a abordar a temática é, sem sombra de dúvida, "Intolerância, de D. W. Griffith, realizado em 1916 e que aparece em qualquer relação séria dos cem mais importantes filmes da história do cinema. Em Intolerância, o diretor nos mostra de maneira épica a intolerância através dos tempos, seja ela política, religiosa ou social. A questão da intransigência sectária também é foco de muitas outras obras cinematográficas, entre elas O Nome da Rosa, Billy Elliot, A Onda, Em Nome de Deus, Timbukto, Além das Montanhas, Alexandria e Além das Montanhas, entre outros. 
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Freud  contribuiu sobre o assunto a partir do conceito de "narcisismo das pequenas diferenças", este fenômeno social de amor entre iguais e ódio às diferenças. Na ausência de um outro perfeito pode a mente humana no estranhamento das diferenças odiar aqueles que estão "um pouco mais além dos espelhos". O outro, principalmente naquilo que de nós difere, pode nos ameaçar. O medo ou repulsa ao que é estranho etimologicamente é conhecido como xenofobia (xenos = estranho, fobia = medo). Da estranheza à intolerância pode ser um pulo. 

Um fanático, um intransigente radial, pode ser descrito como aquele que não consegue imaginar um outro como um outro, isto é, diferente de si. Vejamos, por exemplo, o que dizia Voltaire a respeito: 
O fanatismo é para a superstição o que o delírio é para a febre, o que é a raiva para a cólera. Aquele que tem êxtases, visões, que considera os sonhos como realidades e as imaginações como profecias é um entusiasta; aquele que alimenta a sua loucura com a morte é um fanático.
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Não é tão fácil assim praticar a tolerância. A tolerância é uma virtude que graças a ela conseguimos conviver civilizadamente uns com os outros. Segundo André Conte-Sponville a virtude é necessária para o exercício das pequenas coisas do cotidiano. Para que ela seja exercitada - ensina-nos Humberto Eco - é preciso fixar os limites do intolerável. Porém, como se ser tolerante aquele que se acha certo?, afinal, como diz Fernando Pessoa, "sê tolerante, porque não tens a certeza de nada". 


Joaquim Cesário de Mello


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