domingo, 1 de setembro de 2019

O ANVERSO DO VERSO

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Um poema é feito geralmente de estrofes. As estrofes, por sua vez, são feita de versos. Tradicionalmente um verso representa uma linha do poema. É o verso que dá o ritmo, a melodia e o conteúdo do poema, é que o diferencia este da prosa pura propriamente dita. Com os versos o poema expõe imagens, sentimentos e emoções. O verso é, pois, a alma do poema.

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Assim como há inúmeros e incontáveis poemas, há inúmeros e incontáveis versos. Alguns marcaram minha vida, tocaram meu âmago mais secreto, abriram meus olhos, fizeram-me refletir, modificaram-me. Um bom poeta e um bom poema nos possibilita ligar o nosso Eu pensante com o nosso interior mais interno. É de lá, do fundo da alma humana, que se encontra as raízes de quem somos. O filósofo e também poeta Gaston Bachelard já dizia que “os seres escondidos e fugidios se esquecem de fugir quando o poeta os chama pelo verdadeiro nome”.  É sobre um pouco deles e seus versos que hoje me dedicarei. E como não começar com Fernando Pessoa? Pessoa é para mim o poeta do desassossego e do existir.

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Dentre tantos relevantes e significativos versos de Pessoa destaco: "não sei quantas almas tenho.../Quem tem alma não tem calma". Isso explica o porque de minha tanta inquietação. Alma é vibração, é emoção, é estremecimento. É a alma que anima o ser, ela nos leva a transcender o puramente biológico e animal que também somos nós, Sem alma humana não poderíamos falar de ser humano. Sendo a alma uma força interna que nos movimenta ela é igualmente faminta, assim como o corpo também sente fome. Apenas que a fome da alma não é apetite, porém desejo. A alma deseja, deseja sempre. O escritor português Virgílio Ferreira bem o diz quando escreve: "todo o animal tem uma alma à medida de si. Só o homem a tem infinitamente maior. E o seu drama, desde sempre, é o de querer preenchê-la".
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"Quem faz um poema salva um afogado" (Mário Quintana). Vivemos, dizia Platão, imerso em um mundo de sombras. Vivemos, penso eu, boiantes na superficialidade rasa do cotidiano. O substancial e o profundo muitas vezes escapa aos olhos ("o essencial é invisível aos olhos", Saint-Exupéry), e apressados passamos pela vida sem realmente presenciá-la e sentir o aroma natural de sua mais delicada essência. Paradoxalmente vivemos mergulhados no que há de mais rasteiro, mediano e medíocre. E sequer nos apercebemos disso. Inflados de verdades sólidas submergimos no sufocamento da sensibilidade e nos asfixiamos de inexpressividades banais. Através do olhar poético sobre a existência podemos enxergar além da frivolidade das percepções vulgares do comezinho prosaico do cotidiano.

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"A minha vida fechou-se duas vezes antes de se fechar" (Emily Dickinson). Há aqueles para quem a vida e o mundo são hostis. Há aqueles que morrem em vida, isto é, fenecem antes de morrer. São como luzes de uma vela que minguantemente vão se empalidecendo e se apagam - não há nada mais inútil, triste e sem vida do que uma vela apagada. Pessoas assim, regidas pelo medo, pela vergonha e pudor excessivos, trancam o seu verdeiro self por detrás de uma persona que chamamos de falso self. É como se o pinto se desenvolvesse a partir da casca e não a partir de dentro do ovo. A finalidade da formação de um falso self é o de proteger o self verdadeiro, porém tal proteção acaba sendo limitante e aprisionante. o amadurecer de uma pessoa vedada pelo falso self é uma pseudomaturidade. É como se o potencial, a espontaneidade e a autenticidade acabassem ofuscados por uma segunda pele encobridora. Ou como versa Charles Bukowski, "há um pássaro azul em meu peito/que quer sair".
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"Um trem de ferro é uma coisa mecânica/mas atravessa a noite, a madrugada, o dia/atravessou minha vida/virou só sentimento" (Adélia Prado). O que carregamos na vida é o passado. Este é em nós feito de reminiscências e memórias. Um simples sabor ou aroma é capaz de ressuscitar uma miríade de rememorações e lembranças. Com maestria Marcel Proust descreve como seu personagem no primeiro volume de "Em busca do Tempo Perdido" ao saborear um madeleine (biscoito francês) com uma xícara de chá revive todo um passado infantil. Nem tudo fica tão escondido por detrás da memória. Um dia brota. O que antes fora um rápido momento de vivência é agora uma imagem psíquica impregnada de afeto. É como diz Drummond quando evoca sua cidade natal: "Itabira é apenas uma fotografia na parede./Mas como dói". Creio como verdade a afirmação de Henri-Benjamin Constant, "todo sentimento precisa de um passado para existir".
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"Uso a palavra para compor meus silêncios" (Manoel de Barros). Todo silêncio é prenho de significados. No ventre do silêncio habitam tantas revelações sufocadas pela moral, pelas boas maneiras, pelos costumes, pelos medos e por sentimentos e ideias contrárias várias. Não é à toa que Ingmar Bergman deu o título 'Gritos e Sussurros" a uma de suas mais fecundas obras-primas cinematográficas. Neste filme muito se desnuda ao redor da morte (silêncio infinito) de uma mulher cercada pelos cuidados de suas duas irmã. É neste limiar da vida que vozes abafadas vêm à tona. Freud, com muita perspicácia, logo percebeu que "nenhum ser humano é capaz de esconder um segredo. Se a boca se cala, falam as pontas dos dedos". Evidente que aí Freud não está a falar propriamente sobre o silêncio resultado do não-dito pela vontade daquele que se silencia, mas sim do não-dito sobre aquilo que conscientemente não se sabe. Este é o silêncio que se decorre do recalque. Tal repulsa ou repressão à consciência é psicologicamente um trabalho silencioso, assim como aquilo que é reprimido silencioso fica.

"Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantástico
que torcem para reflexões falsas
uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas".
Fernando Pessoa

Joaquim Cesário de Mello

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