domingo, 25 de março de 2018

ALÉM DA DOR E DO ALÍVIO




Quando um ser humano procura ajuda de outro ser humano, ou mais especificamente quando uma pessoa procura um psicoterapeuta o que motiva tal movimento é a percepção subjetiva de estado de sofrimento. De sã consciência ninguém busca fazer uma psicoterapia por estar bem, alegre, satisfeito e feliz. Mesmo por detrás do aparente discurso de autoconhecimento existe algum descontentamento, seja na sua maneira de ser, de lidar com a vida, com o mundo, com as pessoas ou consigo própria. Tal descontentamento e/ou insatisfação, direta ou indiretamente, suscita desconforto, mal estar, sofrimento. A condição sine qua non para que exista funcionalmente uma psicoterapia é a presença psicológica de algum sofrimento. 


Considerando o acima exposto, nada mais natural, então, que melhorando, seja extinguindo o sofrimento, seja diminuindo-o a níveis mais toleráveis ao mesmo, entenda o paciente que a razão que antes o motivou a procurar ajuda psicoterápica agora não mais exista e queira por isto dar término ao processo. E assim muitas vezes se faz. E assim muitas vezes se deve fazer e acontecer. Todavia, nem sempre o que o paciente necessita seja somente melhora, porém mudança. É mais fácil melhorar do que mudar. Até mesmo porque geralmente melhorar gera, por sua vez, inicialmente dor, isto é, desaconchegamento, desconforto e incômodo. Eis aí um estranho paradoxo no campo da clínica psicoterápica: o cliente nos procura para deixar de sofrer e, de vez em quando, o deixar de sofrer passa por sofrer um pouco mais. 


Por que isso ocorre ou pode ocorrer? Pelo simples fato que muitas vezes o que ocasiona, fomenta ou mantém o estado de sofrimento (angústia, ansiedade, tristeza, depressão, medo, vergonha, culpa, etc) está na maneira como o sujeito se vê (autoimagem) ou vê o mundo (cosmovisão) ou vive a vida (moldura existencial). Existem, por exemplo, hábitos, rotinas, comportamentos, pensamentos e cotidianos que são de alguma maneira psicopatogenicamente tóxicos. A pessoa no curto prazo pode até alcançar alívios e melhoras, mas mentém o mesmo status quo vivencial. Se o que antes contribuiu para o piorar da pessoa continua, apesar da melhora mais imediata, provavelmente no mediato do viver contribuirá novamente para uma recaída. Tem coisas que estão além da dor e do alívio, e para que não se doa mais é necessário chegar lá, ou seja, mudar. 


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Utilizando-me da celebrada frase clássica do livro O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupére, "o essencial é invisível aos olhos", muitas das coisas que realmente importam para sofrermos menos passam desapercebidos por nós no nosso dia-a-dia. É como diz um antigo provérbio de origem bretã: "se os peixes pudessem pensar a última coisa que pensariam era a água". Deixem-me colocar isto de outra forma, pois: notamos a respiração e o oxigênio quando ficamos ofegantes ou sufocados e quando rareia o ar que respiramos. No dia-a-dia se não nos faltar oxigênio nem notamos a respiração e o quanto é vital o oxigênio para nós. Na hora que nos falta sofremos (é quando notamos sua fundamental relevância) e quando retorna nos aliviamos (reafirmando a vitalidade de sua importância). Depois voltamos ao respirar normal nosso de cada dia e "esquecemos" de sua existência. É como também com o dedão do pé. Percebemos o mesmo quando levamos uma topada. Depois nos sossegamos quando deixa de doer.
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Mudança psíquica implica em mudança emocional, cognitiva e comportamental. Trata-se de expandir os horizontes, crescer, evoluir, dar o passo seguinte, continuar. O exercício de pensar frente a um interlocutor contribui sobremaneira ao desenvolvimento da capacidade de dialogar com o próprio pensamento, expandindo-o e fecundando outros pensamentos, propiciando assim a ampliação do universo mental e a transformação de afetos e sentimentos em ação, assim como antigas ações em novas ações. E por que dialogar com os pensamentos dói? Bion, por exemplo, nos diz que o crescimento psíquico exige uma mente capaz de tolerar em princípio alguma mexida emocional, afinal uma mudança psíquica de fato é uma subversão  da antiga ordem de funcionar mental, e isto gera esforço e provoca desconforto. Em contrapartida tal sofrimento é acompanhado de uma maior vitalidade psicológica. 

Melhorar parece mais fácil, ou menos difícil, do que mudar. Mudar é conhecer-se e é através do melhor conhecer-se que se muda. Porém mais e melhor se conhecer passa por "abrir o guarda-roupa e encontrar esqueletos", isto é, remexer alma adentro e, às vezes, tocar em feridas passadas que ainda não estão cicatrizadas. E tocar em ferida dói, arde, queima, angustia, gera ansiedades. Talvez por isto que o psiquiatra Sifneos denominava sua abordagem voltada ao insight como ansiogênica, principalmente pelo sentido que a mesma tem de avançar através das defesas egóicas que visam manter o status quo psíquico, mesmo que este status quo esteja gerando neuroses ou desadaptações. 
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Mudar, em termos psicológicos, porém, não é somente recordar lembranças amargas, reviver ou tocar feridas, superar conflitos antigos mal resolvidos. Como dissemos acima, é também, e muito mais, ir além das cercanias que emolduram a vida (zona de conforto), alterar rotinas e hábitos, pensar de outra maneira, agir diferente. Vários são os mecanismos psíquicos acionados pela trabalho terapêutico que podem levar a um melhor fortalecimento egóico do paciente que, por sua vez, implica em uma maior autoconfiança em poder superar padrões repetitivos e disfuncionais de comportamento e de pensamento, associado em uma maior compreensão e domínios sobre os sintomas e conflitos, obtendo assim ganhos terapêuticos consideráveis. Porém, lembremos, que chegar aí não é tarefa fácil, pois se assim o fosse todos poderíamos mudar naquilo que podemos mudar, todos amadureceríamos naquilo que pode ser amadurecido e todos nos potencializaríamos como pessoa naquilo que é possível potencializar. Sabemos que embora muitas coisas em nós - na nossa maneira de ser, de ver a vida, de lidar com o mundo, as pessoas e conosco mesmo - que podem ser mudadas não vão ser mudadas como que num passe de mágica ou mero estalar de dedos. É um processo às vezes lento e até mesmo um tanto sofrível. É como afirma a jornalista e escritora portuguesa Inês Pedrosa quando diz que "não é de serem felizes que as pessoas têm medo; é de escolher - da responsabilidade da escolha, do compromisso que ela acarreta".


Resultado de imagem para crescimento mentalFreud nos deixou este legado de compreensão: "é difícil ao ego dirigir sua atenção a percepções e idéias que ele então estabeleceu como norma evitar, ou reconhecer como pertencendo a si próprio impulsos que são o oposto daquele que ele conhece como seus próprios". O crescimento mental, não nos iludamos, embora no início provoque uma desorganização de uma determinada homeostase por causa do reordenamento do conhecimento anterior, enriquece e fortalece o psiquismo humano por meio de novos significados e novas simbolizações. Ninguém sai incólume de uma vivência emocional transmutante. A caixinha de lenços de papel posicionada próxima à poltrona do cliente que o diga... 


Joaquim Cesário de Mello

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