domingo, 3 de setembro de 2017

Fenomenologia da intolerância

Costumo dizer que textos despretensiosos, escritos por não especialistas, às vezes, trazem mais novidades que os minuciosos textos da academia, elaborado por "especialistas". Falo isso sem desmerecer os bons autores acadêmicos. Acredito, contudo, que muitas vezes - já devo ter dito isso aqui no LiteralMente - que o formato da produção  da academia cria engessamentos (algumas vezes necessários) que tolhem o elemento criativo de textos digressivos ou meditativos. Meditar, aliás, é um verbo que difícil de se conjugar na atualidade. Supondo que a meditação no sentido da reflexão, grosso modo,  organiza os pensamentos, os sujeitos mais imaginativos saem na frente com produções mais proveitosas.
Falo isso tudo depois de ler o  ensaio do escritor israelense Amós Oz, “Caro Fanático”, reeditado no  livro “Mais de Uma Luz”. Amós Oz adverte, no início, que não se trata de um texto de especialistas.


O que é fanatismo, ou melhor, o que é um fanático? Para os psiquiatras, não é difícil classificar o fanático entre os  transtornos de personalidade. A personalidade paranóide, por exemplo,  cabe bem no modo de  funcionamento  de um fanático: são querelantes, litigantes, obstinados, donos de saberes secretos e defensores de “teorias de conspiração”. A Personalidade Paranóide, contudo,  é um conceito que agrega outras formas de comportamentos que estão além do fanatismo e, ainda, e termina por julga todo sujeito fanático como mentalmente doentes. Os psiquiatras se engasgam quando discorrem sobre as alterações da personalidades associando às enfermidades - aliás, sendo enfermidades, seriam enfermidades permanentes. A pergunta é classifica: pode-se chamar de doentio um jeito de ser?

No passado, no tempo que as classificações usavam termos menos sofisticados, podia se encontrar entre os tipos de personalidade, uma personalidade fanática. Kurt Schneider, psicopatologista alemão, conhecido entre os psiquiatras, cunhou as "personalidade psicopáticas" com as palavras que sugeriam às suas características comportamentais. Estavam lá os inseguros de si, carentes de afirmação, insensíveis, depressivos, e no miolo da classificação, citou  a personalidade fanática, irmã gêmea da paranoia. Schneider faz uma descrição elegante, com precisão, que inclui pessoas com traços permanentes  de ideias e crenças supervalorizadas e irascíveis, e tendência à expansividade - ao contágio. Acrescentou ainda, que a ideia fanática tem firmeza semelhante à uma ideia delirante.


Ao descrever um fenômeno psíquico, muitos psicopatologistas criam um distanciamento que faz do evento uma raridade  ou fruto de um evidente desvio do comportamento. A exemplo da personalidade fanática ou paranoide, encontrar-se um sujeito insólito, excêntrico, necessariamente enfermo que sobrevive em seitas excêntricas, se possível, do outro lado do mundo. Amos Oz põe tudo isso por terra. Amos Oz, aliás, também desabilita o fanatismo de qualquer bandeira ideológica, social, ou religiosa ("o fanatismo é anterior ao Islã", cita) e não os reduz ao universo dos transtornos mentais, encontra-se entre os sujeitos normais. Enfim, há fanatismo em todos os segmentos da humanidade, não é inerente ao pensamento de esquerda ou de direita; não é exclusivo de grupos  religiosos, todas as religiões podem levar a atos de intolerância e de violência, assim como, existem  fanáticos ateus.   Amós Oz destaca que o pensamento fanático se constrói em suas crenças paladinas,  salvacionistas, messiânicas cujo os atos estão além dos seus desejos pessoais, fruto de uma vida  abnegada e desapegada.  


O ensaio de Amós Oz é uma verdadeira fenomenologia - no sentido psiquiátrico da palavra - do fanatismo, que, apesar de  ser condição inexorável do humano, precisa ser domado e submetido “as situações em aberto” - situações de incertezas  de um mundo sem verdades absolutas e tolerante à divergência . Acredita o autor que a sociedade do final de século XX e início do XXI tem formado sujeitos que favorecem o desenvolvimento de ideias fanáticas; justifica que há uma crescente infantilização do mundo, e, nesse universo de mimos infantis, predomina a vivência de falsas verdades e pensamentos maniqueísta - a eterna luta entre o bem e o mal . Disso resulta relações odiosas que se vê, por exemplo, nas redes sociais - um dos principais instrumentalizadores dessa infantilização. O discurso do ódio é a catarse do fanático. Aliás, segundo Oz, o fanático é um ponto de exclamação ambulante, um sujeito intolerante ao senso de humor, ao chiste, tudo que leva ao riso em sua crença, é interpretado como um ato de profanação ou de deboche. Caso venha a se fazer uma sátira, como ocorreu com o folhetim Charlie Hebdo, o fanático, por dever messiânico é obrigado a vingar seu povo, sua crença e "salvar" os pecadores com atos de violência.   

Os grupos fanáticos postam nas redes sociais como salvadores da pátria: pregam soluções (fáceis) para impasses sociais, econômicas e políticas, e os inimigos de suas ideias, razão da infelicidade do mundo, devem, ser demonizados e em seguida banidos do caminho da salvação. julgo, como disse Millôr Fernandes, que quem precisa de salvadores da pátrias, não merece ser salvo.

Marcos Creder

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