domingo, 5 de março de 2017

A nossa parte mais fingida



Seria insensatez dizer que o carnaval é uma festa melancólica? Sempre achei essa afirmação exagerada, mas ouvi isso de uma ou outra pessoa que certamente deveriam estar embevecidas em melancolia, independente de festas ou de épocas do ano. Contudo,  sempre que penso no carnaval, remeto-me ao passado - e pensar no passado incorre em riscos - um passado com marchinhas e frevos tristes - duas ou três canções que me emocionam,  como semelhantes a um fado português, tivessem vocação  para as  lágrimas ou para o sofrimento.  Quando penso no carnaval, tenho tendência a pensar no final da festa, no amanhecer, no lixo de papéis e nos bêbados -  os nossos  Pierrots - caídos ao chão, fingindo-se de mortos, arriscando em serem atropelados.  Bêbados que na minha infância dançaram por toda noite sozinhos em botequins ou espantavam as pessoas nas ruas. O bêbado,  mais que um estado psíquico, era um personagem que tinha em sua índole um misto de tristeza, alegria e violência, uma versão tola e desengonçada de Mr. Hide . Eu temia os bêbados independente de ser carnaval ou não.


No longo e belo prefácio  dos “Doze Contos Peregrinos”, Gabriel Garcia Marques  recorda-se de um antigo sonho. Nele ele assiste ao seu próprio enterro com a presença de incontáveis pessoas que havia participado de vários momentos de sua vida. Amigos de infância, de juventude, pessoas que apenas guardava uma precária recordação,  um mero figurante que sequer sabia o nome. Após  despertar, Garcia Marques teve um pensamento, algo como “no dia da morte conseguimos  juntar o maior número de pessoas amigas”. Essa constatação o entristece. Os “Doze Contos Peregrinos” são ótimos, mas confesso que esse prefácio é inesquecível.  

Aproveitando-me do paradoxo entre carnaval e a  melancolia, acrescento que assim como no cortejo de um funeral, um bloco de carnaval também tem capacidade de agregar um fragmento de nossa vida, de nossos amigos e conhecidos, desde que o carnaval, obviamente, tenha permeado em desfiles desde a nossa infância.   Como no sonho do escritor, o carnaval agrega pessoas, cria anacronismos, paradoxos (alegria/tristeza, loucura/sanidade, vida/morte) e finaliza, como na  ressaca ou na lucidez do bêbado, com a ideia de fim, de cinzas, de morte, de silêncio.

Há uma passagem no  texto “Restos de Carnaval”, de Clarice Lispector, quando ainda morava no Recife, sobre sua breve e ambivalente passagem na folia:

“E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.
(...)


Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrola­dos e ainda sem batom e ruge — minha mãe de súbito piorou mui­to de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa — mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de mo­ça que cobriria minha tão exposta vida infantil — fui correndo, cor­rendo, perplexa, atónita, entre serpentinas, confetes e gritos de car­naval. A alegria dos outros me espantava. Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim.



A ideia de passagem, de transitoriedade, de começo, meio, fim, e insisto, de ressaca, talvez faça do carnaval a melhor alegoria para representar o nosso apego às ilusões. Passamos pela história de nossas vidas com essas vestimentas fantasiosas que dão sentido ao riso,  ao choro, ao viver. fazemos essa travessia farsesca, sabendo que são máscaras e adereços (A nossa parte mais fingida),   sabendo da brevidade desse desfile.

Marcos Creder  




      

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