domingo, 4 de outubro de 2015

A psicopatologia da Saudade







Sempre escuto falar que saudade é uma palavra exclusiva da língua portuguesa, que é intraduzível para outros idiomas. Nunca procurei me certificar disso, prefiro como alguns mitos infantis, continuar acreditando. A saudade por si só nos solicita uma exclusividade pessoal, como se ao recordar de acontecimentos com esse sentimento fosse privilégio de alguns - meu em especial. Há quem descreva a recordação da saudade como um filme. Eu costumo, talvez por tradição da geração do final do século XX, compará-la a fotografia. Não necessariamente aquela fotografia oficial, onde estão todos juntos, amigos, familiares, pessoas da universidade, do trabalho, mas na imagem  de um detalhe, como se  a saudade  revisitasse a nuance dos acontecimentos como imagens singulares e de baixa nitidez. Nessa névoa estão as expressões afetivas.

O fotógrafo norte-americano Steven McCurry  partilha da mesma ideia de que a  marca que a imagem fotográfica nos deixa na memória é superior ao filme, ao vídeo. Observei as suas fotografias e pude ver que, assim como as recordações individuais, elas tem aspectos peculiares,  captam, do mesmo modo, a imagem afetiva.  descobri que muitas fotografias que admirava das capas de algumas revistas foram tiradas por ele. A clássica imagem da menina do Afeganistão em se mistura beleza, temor, apreensão, perplexidade é um exemplo dessa intenção multifacetada de expressar sentimentos de um evento por uma única imagem. são também de McCurry muitos imagens icônicas dos atentados do 11 de Setembro ocorridos há quase vinte anos -  fotos que, por sinal, fez quase que por acaso.

Uma vez, faz muitos anos,  fui chamado para dar uma aula, “A Aula da Saudade”, a uma turma de psicologia. Esses eventos, por sinal, me deixam bastante envergonhado, mas seria muita deselegância recursar um convite desse tao raro. Aceitei sem bem saber o que falaria. Havia dois problemas: não sou psicólogo, sou psiquiatra - o que diria aos futuros psicólogos? -  e outro,nunca soube discursar com habilidades dos oradores profissionais - dava aulas, apenas. Duas coisas, contudo, me favoreciam, a turma era pequena, e - que alívio! - na ocasião não havia cerimoniais comuns hoje nas  Aula da Saudade, resumia-se a um discurso mais elaborado frente aos alunos vestidos para tirar fotografias.  Minhas aulas, por sinal, eram pouco sistemáticas, com poucos esquemas, inclusive, era um desafio ter que dar aulas iguais para turmas diferentes - uma aula é irrepetível - e pretendi fazer do mesmo modo, mas logo desisti, seria usar muita autoconfiança para quem é tímido. Arrumei um meio de deixar algo por escrito para que não escapulissem palavras desnecessárias. Fiz o mesmo discurso usual a essas cerimônias, dei boas vindas ao mercado de trabalho, falei das dificuldades do exercício da profissão, de algum momento de crise que, como hoje, atravessamos. Fui até o final em voo de cruzeiro, recebi os aplausos e apertos de mãos necessários,  mas ao dirigir um último olhar para o grupo de formandos, pude ver que muitos choravam cabisbaixo. Foi aí, nesse momento,  que me dei conta que faltou o principal: falar da saudade. a aula é da saudade. A saudade estava ali o tempo todo derretendo ou queimando os corações e eu falando de números e de conjuntura nacional - que bobagem. Se a saudade é um sentimento, eu poderia ter falado disso junto com a nostalgia, da falta, poderia ter inventado, ao menos,  uma Psicopatologia da Saudade. Nesse meu olhar, que guardo como fotografias,  ainda pensei em  reconstruir e retificar, tudo, e dar uma nova aula, a Aula.  Mas não deu, já era tempo, o tempo passou.  “Fica na saudade”. Enfim, depois de muito tempo releio a frase de Guimarães Rosa: a saudade tem um pouco de velhice.

Marcos Creder   
 

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