Quando dava aula no Hospital Ulysses Pernambucano pela UNICAP, selecionava pacientes que quisessem participar das entrevistas com os pequenos grupos de estudante de psicologia. Esse trabalho não era difícil, pois a maioria gostava de interagir com os alunos e, mesmo que não se reconhecessem doentes, “queriam dar aulas para os estagiários”. Numa dessas ocasiões encontrei um deles, ainda no pátio, que estava desenhando - e desenhava muito bem, por sinal - aquilo que chamou de “o projeto de uma bomba para explodir o Iraque”. Perguntei por que desenhava objetos tão destrutivos e ele, corrigindo-me, respondeu: "não desenhei nada, doutor. A minha mão que foi guiada por Deus; Se fosse por mim, fazia outras coisas, desenhava flores”. Explicou-me que sua mão era, de fato, conduzida pelo Pai - “já foi”, acrescentou, “pelo Diabo”, confidenciou-me. O paciente disse-me não ter nenhum controle sobre seus atos de natureza física. Contudo, ficar à mercê dos desejos das forças sobrenaturais, o angustiava - justificava que fazia tratamento no hospital, justamente porque isso lhe tirava o sono. "precisava voltar a dormir", concluiu.
As palavras do paciente caracterizam o fenômeno psicopatológico conceituado por Kurt Schneider como “delírio de influência corporal” (Karl Jaspers chamaria de “atos impostos”). Na verdade, são dois conceitos: delírio, por quebrar o teste de realidade e a capacidade de julgamento e, consequentemente, de ajuizar, e, por acreditar piamente no evento; de "Influência", por acreditar que forças sobrenaturais controlam os atos de sua vida cotidiana, que seu corpo é, muitas vezes sem sua autorização, um mero instrumento de um outro, um superior. Quem estivesse comigo nesse e escutasse o cliente, não questionaria seu quadro psicótico. Contudo, mesmo sabendo que se trata de um delírio, uma atividade inquestionavelmente patológica, posso afirmar que a psique humana, mesmo não adoecida, pode construir ideias falseadas parecidas.

O filme é recomendadíssimo.
Esse filme me fez lembrar do paciente que atendi no HUP. Em um determinado momento, um arqueólogo comenta que entrevistou, em outra ocasião, um aborígene da ilhas polinésias que retocava gravuras. Perguntou por que ele gostava de desenhar: o sujeito lhe corrigiu, “eu não desenho, quem desenha é o Espirito”. O arqueólogo pergunta-se sobre as razões do autor, assim como meu paciente, fugir ou se distanciar da autoria. A resposta, ou as respostas não são nada simples, mas nada impede que possamos criar suposições.
Um dos sentidos da arte está na mimesis, na imitação da realidade, e posteriormente, na poiesis, na criação. Arte como imitação não tem questionamentos relevantes - é a representação da realidade; mas como criação, adicionar-se àquilo que foi imitado, o desejo do criador. A grande problemática está que tanto nos seres pré-históricos, quanto nos aborígenes a noção de subjetividade, de indivíduo - e aí e se inclui o indivíduo autor - é bastante fragmentada, mesma fragmentação pelas quais partilham os pacientes psicóticos. O sentido da arte, como representação ou criação tem, em parte, um caráter de magia, como se a expressão artística se tornasse sacra e ganhasse um caráter de verdade oracular. Daí a necessidade do artista em abandonar a autoria e torna-se feiticeiro.
Jorge Luiz Borges, utilizou de recursos semelhantes, nos contos misturou realidade com ficção, distanciando-se aqui e ali da criação, e provocando, deliberadamente, embaraços nos leitores. No momento que a arte escapa da realidade e invade a imaginação, provavelmente, o sentido vai mais além da cópia e tenta provocar empatia das pessoas. Vai desejar fazer, como bem disse Aristóteles, a vida como poderia ser. As civilizações pré-históricas insistiam em desenhar essas figuras em cavernas não apenas para passar o tempo, mas para dominar o tempo, fazer previsões e lutar contra o infortúnio. Por mais céticos que sejam os artista, essa magia continua a existir em toda obra de arte.
Marcos Creder
Marcos Creder
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