domingo, 9 de março de 2014

O CHEIRO E O SABOR DO TEMPO









Acaso não tivéssemos memória não perceberíamos o tempo, apenas viveríamos o transitar rápido e volátil do presente. Porém temos memória e, por isto, temos passado. Nosso cérebro é dotado de uma imensa e quase incomensurável capacidade de armazenamento e resgate. O mundo e a vida nos invade através dos sentidos. Inúmeros são os estímulos que nos cercam no mais simples do dia-a-dia. Estímulos visuais, auditivos, táteis, olfativos, gustativos e proprioceptivos. Muitos desses estímulos acabam guardados na chamada memória de longo prazo. E é nesta espécie de gaveta subjetiva onde se encontra preservada uma parte de nossas infâncias e meninices. Aqui e acolá quando a abrimos lá está aquele mesmo cheiro marinho de sargaço das praias de outrora, bem como o sabor dos refrescos de mangaba da casa da avó. 

Em sua monumental obra "Em Busca do Tempo Perdido" composta de sete volumes, mais precisamente no primeiro livro, "No Caminho de Swann", Marcel Proust no oferece um singular exemplo do poder que o olfato e o paladar tem de acordar o passado. Um prosaico mastigar de um bolinho (madeleine) amolecido em chá ressuscita no narrador os tempos infantis vividos em sua cidade natal. Escreve Proust: 
"Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou antes, essa essência não estava em mim; era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal."
A base estrutural e neurológica da memória é constituída de lóbulos, córtex, amídalas e de outras partes anatômicas do cérebro, porém memória é essencial e funcionalmente sensitiva. A sedimentação das vivências é lastreada de sensações e sentimentos, bem como a percepção (porta de entrada da memória) é colorida por nossas emoções e fantasias. Sim, o pano de fundo de nossas experiências com o mundo e o espetáculo de viver é pura sensitividade, afinal nosso corpo é mnésico. O externo no invade pelos orifícios intercambiantes do corpo e da pele. É pelos olhos, narinas, boca, ouvidos e epiderme (incluindo o toque e o tato) que vivenciamos o mundo exterior e o transformamos em mundo interior. Registramos nosso transitar na vida e o acumular de nossos apontamentos chamamos de lembranças e recordações. Sem elas não teríamos passado, história nem identidade. Como saberíamos quem somos sem uma memória que construísse e conservasse a continuidade do eu de cada um?

Em seu livro "Quase Memória" Carlos Heitor Cony ressalta o papel fundamental das sensações na absorção da realidade. Vejamos, então, seu relato do receber de um envelope de seu pai já morto: "pois o envelope tinha um cheiro - era o cheiro dele, de fumo e água de alfazema que gostava de usar... Recente, feito e amarrado há pouco, tudo no envelope o revelava: ele, o pai inteiro, com suas manias e cheiros". É o passado se presentificando pela fugaz sensação trazida involuntariamente da memória. O mundo invisível de nossas lembranças subjaz latente e potencialmente pronto a ser evocado, basta o estímulo, o gatilho disparador das mesmas. É como afirma Proust: "mas quando mais nada subsiste de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas, - sozinhos, mais frágeis, porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, - o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação".


Sobrevivemos no persistir de nossas memórias. Creio mesmo até que somos um desdobramento do encontro entre a memória e o sonho. Nossa biologia pouca serventia teria se não fossem ambos. Somos um espaço entre o memorar e o devanear onde nos fazemos subjetivamente como pessoa e por onde transitamos no percorrer de nossas vidas. 
Isto o que sou: um complexo inteiro de imagens, sons, aromas, sabores e sensações várias chamado Joaquim. Trago em mim a brisa e a maresia matinal da praia de Boa Viagem, a fragrância do English Lavander, o paladar gaseificado da laranjada Crush, os acordes cadenciados de To Sir With Love, os cabelos endurecidos de laquê, o brilhar da camisa branca embaixo da luz negra, o adocicado colorido do drops Dulcora, o exalar misto de vegetais e tintas impressos da Sodiler do Aeroporto, o gosto róseo do pudim Royal, o sabor mentolado do primeiro beijo...
E pensar que muito me fiz de coisas fora de mim. Do vapor úmido das chuvas invernais ao bafio bolorento dos guarda-roupas de minhas tias, fui-me construindo de aromas e odores, de gustações e gostos, de gritos e sussurros. Minha alma é impregnada de perfumes, murmúrios e sabores. Por isto vibro de paladares, musicalidades e olfatos. O melhor de mim veio de ontem. 



Meu menino invisível se guarda como as silenciosas páginas fechadas de um livro à espera de um vento que as folheie subitamente. O que antes me cercou é agora presença quando o etéreo se faz carne. E o que lá um dia esteve mais uma vez hoje está. E o menino se ressuscita no homem, enquanto o homem se faz de novo menino. Reinvento-me, pois, no recuperar de mim. Este é o segredo e a magia da memória: levar-nos repentinamente aos sítios de antigamente. 


Joaquim Cesário de Mello

2 comentários:

Cristiane Menezes disse...

Nossa, amei este texto. É pura realidade. Outro dia destes procurava uma colônia, e entre elas estava a que meu pai usava, abri a tampa, e foi como vê-lo sair do banho, renovado. Foi tão bom. Sou marcada por cheiros. Jasmim, por exemplo, se abrem à noite e basta sentir o cheiro para me ver caminhando no Parque da Jaqueira há uns anos. Certa vez,fiz um poste sobre isto no meu ex-blog: Quadros, Retratos & Leituras -http://quadroseretratos.wordpress.com/2012/03/04/no-ar-2/
Tanto cheiro como sabores. Gostei! Cristiane Menezes

Karlos Kater disse...

Somos o que do mundo passou por nós..