sábado, 15 de março de 2014

A Angústia do Poeta



Domingo passado li na Folha de São Paulo um artigo de Ferreira Gullar que me trouxe alguns pensamentos antigos. No artigo, Gullar falava de sua relação com seu animal de estimação, a sua gata, e faz diversas digressões a respeito da vida humana e animal - o artigo tem como título “Quisera eu ser um gato”.  Não tenho ideia de como é o dia-a-dia do poeta, mas esse texto, em especial, trouxe-me impressões de cenas de uma vida solitária, taciturna e silenciosa, onde um senhor, já idoso - o próprio poeta - , questiona o sentido da vida humana frente a vitalidade da vida animal. Diz:

Olhando-a dormir na poltrona da sala, lembro que para ela a morte não existe, como existe para nós, gente. Ela é mortal, mas não sabe, logo é imortal. A morte, no caso dela, é apenas um acidente como outro qualquer, dormir, comer, brincar, correr; só existirá quando acontecer, sem que ela saiba o que está acontecendo.
Neste ponto é que a invejo. Já pensou como a vida seria leve se não tivéssemos consciência de que ela acaba? Seria como viver para sempre, tal como ocorre com a gatinha.

Enfim, são reflexões de uma pessoa  já  familiarizada com as ideias que rodeiam a morte. Mas existem sujeitos que não pensariam na sua própria morte? Todos  pensam na morte, alguns como fim, outros  tentam  dar outras soluções -  provisórias, em sua maioria -  que fazem a vida perpetuar-se. Essas reflexões são geradora de angústia, talvez a angústia mais persistente e mais sem resposta no ser humano. Mesmo os mais confiantes na vida pós-morte, quando se aproximam do fim, vêem  esse fim misturar com a ideia de aniquilamento, e, quedam-se em angústias e medo - lembro de um texto de Tolstói em que o personagem (Ivan Ilicth) sofre, na iminência de sua própria morte, todos os dissabores, todas as dores, todo horror e temor, até o momento em  que “a morte acaba, a morte deixa de existir” - ou seja, a morte, enfim, se consuma.   Foi partindo dessa premissa que Ferreira Gullar quis dar o status de imortal à sua gata. E ele tem razão. Nós somos mortais no momento em que incorporamos a ideias de fim, e nos tratamos com nostalgia como se, já mortos, ainda vivêssemos a lamentar os desejos frustrados com a própria morte, equívoco que o poeta  romano Tito Lucrécio, um século antes da era cristã,  comentou: “depois que vais, nenhum desses desejos há de ver-te mais”.

Interessante é que o texto desse poeta ficou hibernando, ou morrendo, por vários e longos séculos e só foi descoberto  perto do final da Idade Média, no ano 1417. Essa descoberta se deu em uma biblioteca de  um  monastério na Alemanha  e, surpreendentemente, apenas  um volume do famoso  “Da natureza das Coisas” (de rerum  natura)  foi encontrado.

Por que Lucrécio foi um autor tão esquecido? Poderíamos pensar que teria sido um poeta ou um pensador de pouca relevância. Mas não era o caso. Sabe-se que esse autor trazia pensamentos que feriam o que há de mais narcísico na condição humana, a nossa onipotência e nossa aparente superioridade universal.  Lucrécio teve significativa influência  no período moderno, há citações dos seus textos em  Copérnico, Giordano Bruno, Galileu, Montaigne. Alguns exemplos de seu pensamento colhidos do historiador Stephen Greenblatt podem ser destacados: “O universo não foi criado para servir o ser humano”; “os seres humanos não são únicos”; “a sociedade humana começou não com uma dourada tranquilidade e abundância, mas com uma batalha primitiva pela sobrevivência”; “a morte não é nada para nós”; “o maior obstáculo ao prazer não é a dor, é a ilusão”.

Enfim,  as ideias desse pensador podem (e devem ser) ser contestadas se se encontrar melhores repostas, mas mesmo sem ser refutado, há algo estranho na receptividade desse tipo de pensador.  Se procurarmos nos livros de história das ciências ou da filosofia, vamos nos dar conta que muitas descobertas na verdade foram redescobertas. O que fizeram ser esquecidas ou ocultadas?  Quantas vezes já se disse e se esqueceu que a terra é redonda? Em verdade, esquecimentos como este, são frutos de desejos, de desejos de não lembrar, pois lembrar traz mais uma vez a angústia e o temor de se deparar com a finitude à tona.  Enfim, Lucrécio, assim como muitos outros, foi esquecido porque era necessário fazê-lo esquecido, pensar de outra forma, ou iludir-se, é menos sofrido. Desse modo, as reflexões de Ferreira Gullar trazidas numa cena silenciosa e solitária, são, na verdade, a expressão daquele que tem habilidade de expressar e suportar o sofrimento humano - enfim, o poeta.

Marcos Creder

Um comentário:

Anônimo disse...

Prof. Creder, parabéns pelo seu texto. Lendo-o, fiquei a refletir sobre o outro lado da moeda - a vida.

E,Como cantava o poeta:"E a vida? E a vida o que é, diga lá, meu irmão? Ela é a batida de um coração? Ela é uma doce ilusão?
Há quem fale que a vida da gente é um nada no mundo,
É uma gota, é um tempo
Que nem dá um segundo,
Há quem fale que é um divino mistério profundo,
É o sopro do criador numa atitude repleta de amor". (...)E viva a vida!!!Abs. Rimar de Barros