domingo, 28 de maio de 2017

Petição de miséria (uma história inventada)

Conta-se a história do escritor desconhecido, cujo insucesso não se deveu à inabilidade ou à falta de vocação, mas talvez à soberba. Quando tinha por volta dos 18 anos, ou talvez um pouco menos, fez uma redação no colégio, dessas abstratas que tem títulos sem pé nem cabeça, algo como “o sorriso do morcego”, “Acendi a luz do quarto”, "Ei, você aí". O professor de óculos cerrados pela vista cansada, pôs a ler seu texto e, por fim, disse, em alto e bom tom para todos, “eis aqui, um texto!" e apontando para o aluno, "eis aqui um escritor!”. O agora literata,  orgulhoso de seu feito que compreendia a  pouco mais que vinte linhas em manuscrito, já se via sentado numa livraria, numa noite de autógrafos, ou palestrando com um grupo de intelectuais que estudavam, inclusive, em dias de sábado e de domingo. Imaginou-se não muito rico, afinal, pensou, escritores tem vida monástica, mas, viu, ainda no entusiasmo, cintilações que riqueza alguma pagaria: luzes, comentários elogiosos, premiações, menções. Sabia, no seu íntimo, que como escritor, poderia ainda se manter com suas bizarrices, seu jeito carrancudo, suas vestes despojadas.


Seu professor ainda recomendou deixar de lado o vestibular de Direito e cursar o quanto antes Letras. Era ano do vestibular. Por precaução, ou por puro acaso, o escritor, preferiu manter-se na decisão conservadora. Já com largo apoio familiar, ingressou no curso de Direito na melhor faculdade da cidade. O professor, contrariado, advertira-lhe: “melhor ser um escritor pobre e brilhante, que o um advogado medíocre”. O jovem escritor, impactado por esse oráculo, na tentativa de não se consumá-lo, dedicou-se sobremaneira ao curso de Direito. Fez pós-graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado, tornou-se professor titular e administrava um famoso escritório de advogacia - a placa do empreendimento tinha seu nome. Mas tudo isso, vez ou outra, parecia-lhe incompleto. Faltava felicidade e, sobretudo, faltava preencher a outra parte do oráculo do seu mestre: “ser um escritor brilhante”. Sentia-se,  nesse aspecto e já na meia-idade, um fracassado, não tão medíocre, mas infeliz por falta de dedicação à literatura.   Na sua imaginação, corriam textos extraordinários, embora não escritos. Contos, novelas, talvez um verso, um poema, um soneto, por fim, um grosso romance. Tinha na cabeça, vários enredos prontos que, num momento de entusiasmo, ou talvez de angústia, confidenciava a um ou outro amigo. “Escreve logo isso! publica, registra, cuidado com os plágios”, alertavam. Contudo, por falta de tempo  e de disposição, postergava.

Num determinado dia, observando as redes sociais,  um vício cada vez mais difícil de controlar, esbarrou  numa página de jornal que citava  seu o professor. Já envelhecido, estava sendo homenageado, havia passado por estado de doença física grave, estava entre a vida e a morte. Seus ex-alunos prestavam-lhe homenagens às graças alcançada: sua sobrevivência, embora que precária e temporária. O escritor, subitamente, levantou-se e instintivamente  foi em busca do professor para alcançar-lhe ainda no hospital. Acamado e com óculos ainda mais hostis, o senhor observou:

“Não me lembro de você”, disse com uma sinceridade pedante.

“Fiz uma redação que o senhor, inclusive, em decorrência do seu entusiasmo, me aconselhou  a deixar o curso de Direito e ingressar no curso de Letras”

“Tem certeza de que fui eu mesmo?”

O escritor confirmou com um movimento na cabeça.

“E você se formou em Letras?”, emendou o professor.

“Não, optei pelo curso de Direito”, contou-lhe quase que envergonhado.

“Graças a Deus! jamais me perdoaria se você tivesse se cegado às bobagens que a gente diz”

O escritor saiu do hospital estupefato, horrorizado com a frieza e a indiferença do velho. Por um momento desejou-lhe a morte e todas as maldições da vida. E o velho morria. Antes, contudo, morria as ilusões do escritor - carregara por toda vida  a sombra de um literata, e agora um vento, um hálito de mau humor, soprado pelo antigo mestre, havia dissolvido toda sua mitologia. E, como um adolescente, se perguntou: “quem sou eu, afinal?”. Sem respostas e ainda tomado por uma súbita melancolia, resolveu tarde da noite, distrair-se no escritório. No computador, começou escrever automaticamente uma de suas costumeiras petições. Por alguns segundos, talvez minutos, desviou-se das palavras retas, da clareza e das redundâncias do texto jurídico, e entregou-se a um vazio de dizeres, letras anuviadas, desgraçadas que perduraram por duas ou três linhas. Enraivecido, selecionou, com o mouse todas as palavras e, num passe de mágica, as apagou, se tivessem sido escritas em papel arremessaria ao cesto de lixo.


Marcos Creder


2 comentários:

Unknown disse...

Bela crônica. Você poderia desenvolvê-la um pouco mais.

Helena disse...

Nossa!! Você também é um ótimo escritor ou é um ótimo escritor também!!