domingo, 5 de fevereiro de 2017

O jardim



Possivelmente a maioria de nossos leitores, se não leram, já ouviram falar do livro Cândido ou O Otimismo, escrito por Voltaire, pensador do século XVIII. Nele o personagem passa por diversos infortúnios e dissonâncias e, dono de uma capacidade sobre-humana de resiliência, assiste às suas desgraças, tirando delas experiências “de superação” e de aprendizado. Só no final, Cândido enxerga, enfim, que nem tudo é superável ou gerador desse amadurecimento positivo. No fim do texto, Cândido abandona a ideia de Leibniz de construir ou de luta por um mundo melhor, pelo modesto preceito: “cultivemos o nosso jardim”. Cândido é um texto irônico e sarcástico, com passagens cômicas, que foi escancaradamente endereçado ao filósofo Leibniz.


Cândido é uma espécie de iluminista que teria uma visão de subserviência e submissão à contingência, uma metáfora que questiona até onde somos ou devemos ser tolerantes ou passivos com os acontecimentos. A tolerância é, inquestionavelmente, uma virtude, mas seu excesso, como disse certa vez Saramago, permite que algumas atrocidades sejam cometidas. O tolerante, na sua candura, é cortez e diplomático e  guarda pouco ceticismo, pelo contrário, alimenta-se, como ironizou Voltaire, de um otimismo leibniziano em relação às coisas do mundo. A candura apesar de incansável lutadora, é ingênua, é idealista, termina por entrar em batalhas com fracassos já anunciados, guerra já perdidas e por causas inviáveis. No final, sobra-lhe um arbusto desse jardim Voltaireano .

A tolerância também culmina numa postura estóica, como se o tolerante tivesse que transcender a pequenez do outro, provavelmente seu agressor, e viesse a domar seus próprios instintos agressivos em defesa de uma causa maior - muitas vezes pertinentes.Infelizmente, a cada dia que passa, assistimos a um mundo mais agressivo e cada vez mais monstruoso - talvez sempre tenha sido assim - e somos cada vez mais solicitados por uma demanda de tolerância.

Se alguém me perguntasse assim, meio de supetão, qual meu filme preferido? eu talvez nem soubesse responder - são tantos... Mas qual o filme que lhe deu mais "respostas"? sem titubear diria: “Dogville!” e acrescentaria, Dogville, na verdade, não me respondeu nada, corrijo-me, mas, como no teatro de Eurípides, nos mostra a crueldade cotidiana, e isso talvez suscite respostas. Dogville é um filme do polêmico diretor Lars Von Trie que mostra a relação conflituosa ocorrida entre uma remota e pequena comunidade norte-americana  e uma forasteira, a seus olhos, uma estrangeira. O filme transcorre num cenário teatral, onde a cidade é apenas uma inscrição de funções - suas ruas e seus lugares são palavras escritas no chão. Em Dogville não há muros, as paredes inexistem, os olhos do espectador estão desnudos, prontos para espiar o que há de mais perverso nas individualidades humanas: o instinto egoísta, aético, mesquinho, cínico, vulgar, medíocre, lúbrico. Em Dogville, revela-se, no seu mundo sem paredes, a fraude incrustada em cada um dos seus personagens. Grace (nome tão irônico como Cândido), a protagonista, é uma versão feminina e contemporânea do personagem de Voltaire. No final, ao contrário da solução dada ao texto iluminista, não se pensa necessariamente em jardins. Tomada de um ódio - desculpem o spoiler - Grace ordena aos gangsters fiéis ao seu pai, o extermínio de toda a comunidade, deixando o público em êxtase. Da vila sobrevive apenas Moses, o cachorro, que, em mais um sarcasmo do diretor,  dá o nome ao lugar.



Em Dogville, constata-se que a tolerância pode ser tão danosa quanto a intolerância, pois o represamento de emoções e questões tão cruciais podem incorrer, em ataques coléricos. Antes que se recorra a tão extrema solução, cuidemos antes do nosso jardim - e dele não mais abriremos mão, sejamos intolerantes com os que querem destruir nossa fruto e nossa semente.

Marcos Creder

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