domingo, 14 de setembro de 2014

SOLIDÃO EM CORES




Pode parecer estranho que um blog dedicado a articular Arte e Psicologia quase nada tenha dispensado em relação às artes plásticas. Hoje não. Hoje empregaremos este espaço dominical para falar da obra e dos sentidos nela contidos do artista norte-americano Edward Hopper (1882, 1967), famoso por retratar a solidão dos centros urbanos. Embora focado no estilo de vida americano do início e meados do século XX, sua picnografia é atual e espelha o cotidiano das metrópoles e das grandes cidades modernas por onde transitamos e desperdiçamos nossas vidas em banalidades rotineiras e comezinhas frivolidades habituais. Na contramão do modernismo imperante à época, Hopper nos revela, com traços nítidos, firmes e claros, o silêncio dos vastos espaços vazios e a insular presença humana, onde o individualismo é alçado à sua quintessência e somos com ele levados às fronteiras da incomunicabilidade humana. 
Suas figuras são solitárias e melancólicas, e no realismo de suas cenas somos convidamos a espreitar imaginativamente o interior e a particularidade da inquietação do mutismo aparente das imagens congeladas dos instantes passageiros que por tantas vezes contemplamos ser ver em frações milionésimas de segundos do nosso dia-a-dia agitado. O jogo de luzes entre o claro e a penumbra, bem como o isolacionismo entre as pessoas e o soturno dos gestos, paralisam intimidades fechadas em si mesmas em desligamentos afetivos silentes e incomunicantes. Tudo á tão impregnado de gigantesco retraimento e solidão.

A frieza manifesta e acentuada dos indivíduo parece esvaziar qualquer humanidade presente não fosse o ensimesmamento profundo de seus personagens debruçados e absortos em enigmáticos pensamentos. Como se eles fossem esfinges a serem decifradas, Hopper nos propõe mergulhar na subjetividade dos labirínticos misteriosos de suas almas em meio à vacuidade solene e taciturna da ausência de expressividades emotivas. Não há relações. Ou não há ninguém, apenas paisagens desabitadas; ou estão sós; ou estão sós diante uns dos outros. Seu realismo quase figurativo é na verdade uma grande obra poética sobre o distanciamento humano cercado de concretos, asfaltos, vidros e humanos.

Janelas, vitrines e vidraças são onipresentes. Sua ubiquidade não é à toa. Abertas ou fechadas, vistas em suas interioridades ou vistas de fora, as janelas não somente perpassam a luz ou as sonegam, mas também e principalmente representam metáforas de olhares a espiar a  nudez dos espaços internos de tantas vidas anonimamente estagnadas. Às vezes ao transparecer a luminosidade externa parece com ela tocar docilmente a solidão dos viventes e dos desanimados. Em outras, semicerradas, convoca-nos a fantasiar o que é vedado nossas pupilas enxergar. Narrativas ocultas protagonizam a cena como que roubando do evidente exposto histórias invisíveis cujos segredos e incógnitas são tão desconhecidos como desconhecidos são as pessoas gravadas em suas telas.

Na velocidade das áreas urbanas pessoas convivem impessoalmente umas com as outras como uma multidão de estrangeiros. Passamos uns pelos outros sem ois e sem adeuses. Exprimidos em exíguos espaços citadinos estamos juntos sem estarmos próximos. Em nossos perímetros há tanta gente que não pode caber tanta gente com a gente. Na overdose de pessoas ao redor, calamo-nos como se a disjunção comunicacional de nossas almas funcionasse como um antídoto ao excesso de rostos e corpos. Porém, solidão é solidão: seja nas cidades, seja em zonas rurais. Como experiência subjetiva o sentir solidão independe do isolamento objetivo. Trata-se de uma experiência psicológica desagradável que muitas vezes denota alguma deficiência relacional do sujeito que a sente. Pense no sofrimento contido nesta frase de Fernando Pessoa: "a solidão desola-me; a companhia oprime-me". 

Claro que o panorama das multidões urbanas e das escassezes solidárias, onde o individualismo confunde-se às vezes com diminuição de diálogos emocionais mais maduros, gera vivências solitárias diversas. Solitário é aquele que vive esquecido ou se sente esquecido. Na etnografia das sociedades urbanizadas as psicopatogenias dos conglomerados humanos possuem tipologias com marcas ou salpicos da industrialização e do ambiente.A solidão em grupos tem lá suas nuances. As esquinas desertas e o iluminar dos quartos vazios de companhias encontradas em abundância no conjunto da obra de Hopper são imagens aguçadas e áridas do tema abordado. Há algo de opressivo na banalidade frívola das intimidades espiadas, como se o tédio imperasse tanto ou mais do que o oxigênio da atmosfera eivada de distanciamentos afetivos. Quando há mais alguém em cena elas se beiram como uma porta fechada e uma rua deserta.

A tão decantada solidão urbana nos remete à imagem de um ser humano compulsoriamente cercado de outros e incomunicável com seus vizinhos. Todavia, lembremos mais uma vez: a solidão está dentro da pessoa e não em seu redor explicitamente. O distanciamento das proximidades e os rostos sem faces emolduram a sensação de vazio e isolamento internos. Evidente que nas paisagens urbanas apinhadas de gente pode-se observar, aqui e acolá, os solitários peregrinando pelo cantos e estreitos da vida. Os personagens que perpassam nas telas de Edward Hopper manifestam a indiferença e a silenciosidade de quem ali está alheio e abstraído na miudez das tarefas cotidianas.
A solitude é diferente da solidão. Solitude é querer ficar só consigo mesmo. A capacidade de se estar só consigo mesmo é uma referência da maturidade psíquica e emocional. O "eu sou" é sinônimo assim de "eu estou só". É como diz Clarice Lispector: "e ninguém é eu, e ninguém é você. Esta é a solidão". No sentido de solitude, portanto, o estar a sós consigo próprio possibilita aprofundamentos e descobertas. É o que analogamente também descreve Rilke ao afirmar: "uma única coisa é necessária: a solidão. A grande solidão interior. Ir dentro de si e não encontrar ninguém durante horas, é a isso que é preciso chegar. estar só como a criança está só". 

Não sei se as pessoas retratadas por Hopper estão tristes por estarem sós como imagino que estejam. Talvez ali esteja projetado a minha própria solidão e melancolia. Talvez. Mas é exatamente aí que reside a pungência criativa e genial do artista: deixar-nos antever nos mistérios da impenetrabilidade dos pensamentos de suas figurações os vazios que estão tanto dentro quanto fora das telas.

Joaquim Cesário de Mello

Um comentário:

cristiane menezes disse...

Antes mesmo de ler o texto, observei as telas, e o que escutei foi um silêncio tão profundo, quase vazio. Lendo vi o pintor e seus figurantes, só achei ruim porque tive que consultar o dicionário várias vezes, com palavras tão antes desconhecidas que mal consegui pronunciá-las. Cristiane Menezes