Às "Mal Traçadas Linhas" – uma Homenagem à Tinta e ao Papel
Andei lendo recentemente o livro “O Gesto Espontâneo”, uma
coletânea de diversas cartas de D.W. Winnicott endereçadas a diversos
profissionais, teóricos e amigos, e pude constatar que muitas teorias, pelo
menos em psicanálise, não são teorias por si só, mas biografias. Muito se vê no
modus vivendi, na implicação subjetiva do teórico, traços de sua postura
pessoal-profissional repercutir na construção teórica. Essas correspondências
tem, por assim dizer, valor semelhante, e às vezes melhor, que os textos bem
construídos preparados para um público mais heterogêneo. Esse tema que fazem
teorias biográficas merece uma discussão à parte – uma longa discussão que
deixarei para outra ocasião.
Ao ler o prefácio do organizador, contudo, vi que essas
cartas só foram possíveis de serem publicadas graças à viúva de Winnicott que
obsessivamente catalogou todas essas correspondências - o papel dos
companheiros e familiares é de fundamental importância para a multiplicação ou
para o esquecimento desses “famosos”. Penso que o grande trabalho do biógrafo,
especialmente o biógrafo ou historiador do século XX, é tentar organizar esse
sótão, esse baú, essas gavetas em que todos de algum modo deixam alguns vestígios. Poderíamos falar assim do historiador do
século XXI? Das biografias que serão escritas no futuro? O mundo atual parece
ter se complicado nesse aspecto, principalmente, porque as informações,
registros, manuscritos, perderam a materialidade do papel e da tinta. Mesmo que as viúvas, viúvos, filhos ou amigos
tenham empenho em querer cooperar com o biógrafo ou historiador, terão muito
mais dificuldades em ter acesso ao mundo privado do teórico, em razão de fazer
parte de um mundo virtual. Essas “preciosas” contribuições, muitas vezes,
estarão protegidas por senhas e poderão ficar perdidas para sempre. Eventualmente um hacker, que
geralmente não tem nenhum interesse em propagar a obra de um autor, poderá
“expor” detalhes sórdidos da biografia de alguns desses “famosos”.
Acho que muitos autores que tiveram seus textos inéditos
publicados depois de mortos, não publicaram em vida porque não quiseram, porque
não acharam que seriam publicáveis e acho que deveríamos respeitar as possíveis
falhas desses trabalhos. Muitos criticam, por exemplo, o “Projeto para uma Psicologia Científica” de
Freud sem levar em consideração que o próprio autor nunca tivera interesse em
publicar esse longo manuscrito. Mas há outras situações em que a publicação não
ocorreu em vida por pura fatalidade, como é o caso de Albert Camus e de Dante
Alighieri. Os últimos dias de vida de Dante, em especial, renderiam bons
roteiros de filmes épicos. Se não fosse o papel e a tinta dificilmente teríamos
conhecido por inteiro “A (Divina) Comédia”. De acordo com Boccaccio, seu
primeiro biografo, A terceira parte do livro (“O Paraíso”) estava incompleta,
faltavam os últimos 13 cantos e familiares sequer tinham certeza de que tinham
sido escritos. Foi proposto na ocasião que seus filhos terminassem a obra
baseado no conhecimento que tinha do pai e na própria cadência da obra. Oito meses após a morte de Dante os cantos
foram então achados num vão de parede, escondidos numa pilha de manuscritos, o
papel e a tinta, mofados.
Umberto Eco disse em entrevista para o texto “Não contem com
o fim do livro”, que o livro talvez tenha sido uma das maiores invenções da
humanidade e, desse modo, assim como a invenção da roda, dificilmente vai se
extinguir, contrariando o que preconizam alguns escritores da atualidade. O
livro é prático, é de fácil manuseio e não depende de parafernálias
tecnológicas para se ter acesso.
“Eletrônicos duram dez anos, livros duram cinco séculos” comenta ao
questionar os vários formatos que mudaram no transcorrer dos últimos trinta
anos – disquetes, cds, pendrives etc. Seguindo esse raciocínio, caso ocorresse
um blackout energético ou tecnológico no futuro, seria mais fácil ter
acesso a um texto de um escritor Medieval que de um escritor de meados do
século XXI. Nem tudo, portanto, estaria perdido se pensar que o pesquisador do
futuro poderia resgatar manuscritos de Cervantes, Shakespeare e o próprio
Dante. Mas que valor terá estes artistas no futuro?
* * *
No mesmo tempo que lia Winnicott, relia também outro artigo:
“Sobre a Transitoriedade”. Esse texto sumário de Freud trata da ideia – para
muitos, angustiante – da finitude da vida humana, do belo, da arte. Tudo será
findado, mas para Freud:
“Mesmo que venha um tempo, em que os quadros e as
estátuas, que hoje admiramos, sejam destruídos, ou surja uma espécie humana,
depois da nossa, que não mais compreenda as obras de nossos poetas e
pensadores, ou até mesmo uma época geológica em que se extinga tudo o que é
vivo sobre a terra, o valor de todas essas coisas belas e perfeitas seria
determinado apenas pela sua significação para nossa vida afetiva”
Desse modo, quando se redescobriu as partituras da música de
Bach no século XIX por Schumann e outros entusiastas, ou quando alguém
intercedeu para que Franz Kafka não ateasse fogo em toda sua obra, ou ainda,
quando Giovanni Boccaccio publicou a “Divina Comédia”, não se estava reeditando
ou salvando o passado apenas, mas o presente. Há muitos papéis avulsos contando
nossa história e que ainda não foram descobertos.
Originariamente publicado em 14/04/2013
Marcos Creder
Originariamente publicado em 14/04/2013
Marcos Creder
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