Quem
nós somos se confunde com nossas histórias. É a história pessoal de cada um que
nos individualiza, nos singulariza e nos identifica. Somos um feixe de
acontecimentos, lembranças, experiências e vivências, e tudo isto junto nos faz
únicos porque lhes atribuímos significados. Um mesmo evento, episódio ou fato
são valorizados, sentidos e provados de maneira particular e pessoal por cada
pessoa, cada individuo. O escritor Érico Veríssimos (todos da minha geração
leram ou foram obrigados pela escola e pelo vestibular a ler Érico Veríssimo)
em seu romance “O Resto é Silêncio”, ao narrar o suicídio de uma jovem,
presenciado por vários personagens, narra e descreve as várias reações de cada
um. O fato é um só (o suicídio), mas o impacto sobre as pessoas são diversos. O
cineasta japonês Akira Kurosawa é ainda mais contundente em seu filme
“Rashomon” quando, através do recurso fílmico do flashback, expõe os relatos
divergentes de quatro testemunhas de um crime. É, e são, como se fossem quatro
histórias diferentes. Não é à toa que em Direito sabe-se, embora se aceite como
meio probatório, o quanto é passível de falibilidade a prova testemunhal.
O
filósofo político Noberto Bobbio em seu livro “O Tempo da Memória” escreveu com
propriedade no alto dos seus 87 anos que “somos
o que lembramos”. Mas podemos nós fiar e acreditar cegamente em nossas
memórias e lembranças? Saibamos, de antemão, que nossas memórias podem ser
auto-enganativas, afinal se chamamos o psiquismo de mente é porque ele mente. Mas não, nem necessariamente, porque sejamos mitomaníacos, mas sim, como diz o poeta Walt Whitmam, quando escreve: “contradigo-me? Pois bem, então me contradigo. Sou extenso, contenho multidões”.
Nos fazemos como pessoa dentro de nós e nos descobrimos dentro de nós, porque desde logo e cedo estamos inseridos no mundo que iremos aos poucos conhecendo. E este mundo está repleto de situações e acontecimentos, e no tatear titubeante do caminhar pela vida mundo a fora, vamos simultaneamente nos construindo como pessoa ao tempo em que vamos experienciando o mundo. A pessoa de cada um e o mundo de cada um são a dupla face de uma mesma moeda.
Aqui e acolá o que nos acontece vai deixando marcas que se somam ao jeito de ser do ser que se edifica. Cada evento em si tem lá sua importância, mas em muito dependerá da nossa subjetividade, isto é, do significado, da significância e das repercussões emocionais e suas reverberações em nossa alma e psiquismo. Não somos um mero acumular de episódios e fatos ocorridos. Somos uma mistura indelével de percepções, sensações e atributos, com os quais damos interpretações às circunstâncias e aos acontecidos.
Atribuir novos significados ao passado requer mudar a visão que temos de nós mesmos e de nossas biografias. Isso é possível porque os significados que damos aos acontecimentos vividos e as experiências vividas em muito depende do filtro pelo qual vivemos e registramos. Olhando para trás, e mudando o filtro, podemos alterar tais significados, afinal não podemos passar uma “borracha” e simplesmente deletar o passado, pois este está entranhado em nós, gostemos ou não. George Santayana, poeta e filósofo espanhol, já dizia que “quem não recorda o passado está condenado a repeti-lo”.
Nos fazemos como pessoa dentro de nós e nos descobrimos dentro de nós, porque desde logo e cedo estamos inseridos no mundo que iremos aos poucos conhecendo. E este mundo está repleto de situações e acontecimentos, e no tatear titubeante do caminhar pela vida mundo a fora, vamos simultaneamente nos construindo como pessoa ao tempo em que vamos experienciando o mundo. A pessoa de cada um e o mundo de cada um são a dupla face de uma mesma moeda.
Aqui e acolá o que nos acontece vai deixando marcas que se somam ao jeito de ser do ser que se edifica. Cada evento em si tem lá sua importância, mas em muito dependerá da nossa subjetividade, isto é, do significado, da significância e das repercussões emocionais e suas reverberações em nossa alma e psiquismo. Não somos um mero acumular de episódios e fatos ocorridos. Somos uma mistura indelével de percepções, sensações e atributos, com os quais damos interpretações às circunstâncias e aos acontecidos.
A
história pessoal de cada indivíduo humano não é tão somente as experiências
deste frente ao mundo físico, mas é também, e principalmente, uma realidade interpessoal
onde através do convívio com os outros se constrói um ser por meio do diálogo
entre o que se percebe e o que se compreende. E assim, a história de cada um de
nós é feita do significado que damos a ela, ou seja, nossa história pessoal é o
modo pessoal como construímos nossa história.
Nossa narrativa autobiográfica
não é em si uma história realística, pois a mesma é bastante colorida pelas
emoções, fantasias e desejos. Organizamos nossas histórias pessoais por meio de
visões pessoais sobre a mesma. Somos uma versão de nós mesmos. Para facilitar,
portanto, um pouco o até aqui explanado, ouçamos Freud quando afirma que “pode-se questionar se temos mesmo alguma
lembrança proveniente de nossa infância: as lembranças relativas à infância
talvez sejam tudo o que possuímos. Nossas lembranças infantis nos mostram
nossos primeiros anos não como eles foram, mas tal como apareceram nos períodos
posteriores em que as lembranças foram despertadas. Nesses períodos de
despertar, as lembranças infantis não emergiram, como as pessoas costumam
dizer; elas foram formadas nessa época. E inúmeros motivos, sem qualquer preocupação
com a precisão histórica, participaram de sua formação, assim como da seleção
das próprias lembranças.” Atribuir novos significados ao passado requer mudar a visão que temos de nós mesmos e de nossas biografias. Isso é possível porque os significados que damos aos acontecimentos vividos e as experiências vividas em muito depende do filtro pelo qual vivemos e registramos. Olhando para trás, e mudando o filtro, podemos alterar tais significados, afinal não podemos passar uma “borracha” e simplesmente deletar o passado, pois este está entranhado em nós, gostemos ou não. George Santayana, poeta e filósofo espanhol, já dizia que “quem não recorda o passado está condenado a repeti-lo”.
Lembremos ainda que a memória
humana, além de plasmada pelas impressões, é igualmente seletiva. É como
menciona o professor Wolney Honório Filho: “a
memória vem elegantemente acompanhada do esquecimento”. E o esquecimento –
não esqueçamos de Freud – é um recurso psíquico frente a vivências difíceis e
conflitos não superados. Às vezes tendemos a “apagar” parte de nós e de nossas
histórias do que reconhecê-las dolorosamente como parte integrante de nossas
personalidades. A mente humana, assim, às vezes, prefere o silêncio em si
mesma.
Sim, mudando um pouco o ângulo já
mudamos um pouco até nós próprios. Duvida? Então tente olhar pro passado e
veja, por exemplo, seus pais com maior compreensão de suas humanidades e juventudes,
e destile de suas lembranças mágoas e rancores. Aposto que eles vão continuar
ali no mesmo lugar do seu passado, mas provavelmente eles não estarão agora lhe influenciando ou machucando tanto, e se alguma lágrima escorrer em sua face ela
não terá o antigo sabor salgado misturado com acre e fel.
Se
a partir do hoje mais maduro olharmos o ontem com estes olhos mais sábios de
agora, provável que possamos entender melhor que as falhas e erros parentais
não foram advindos de pais onipotentes, grandiosos e maldosos, mas de humanos
assustadiços, carentes e contraditórios, e que, embora fossem os adultos da
nossa infância, eram também crianças assombradas com outras crianças no colo.
Homens e mulheres que escondiam meninos e meninas cujos esconderijos não eram
impermeáveis, pois a vida – já encenava Bergman – penetra tudo. Não, não. Nem
sempre tivemos pais que repudiaram nossos prematuros afetos, mas que titubearam
frente a eles. Muitas vezes quisemos amor e eles nos devolveram angústias de
suas próprias primitivas histórias.
Hoje,
se pudéssemos voltar pra trás, de lá de onde viemos, erraríamos outros erros,
evitaríamos outros medos, pediríamos desculpas de outras coisas, amaríamos de
outras maneiras e escreveríamos outros textos com outros teores.
Hoje, relendo minha própria história,
reencontro-me com meus pais de outro jeito.
Joaquim Cesário de Mello