A FANTASIA E SUAS VERDADES
Uma apreensão
freqüente entre os que estão iniciando as primeiras entrevistas com pacientes
psiquiátricos psicóticos (esquizofrênicos, paranóicos e, eventualmente,
portadores de transtorno bipolar do humor) ou até mesmo em psicoterapias de
quadros de menor gravidade clínica, é saber se o que os pacientes dizem faz
parte da realidade ou da “fantasia”. Isso me fez lembrar uma ocasião em que
entrevistava um paciente numa emergência e o familiar me advertiu para que eu
não “desse ouvidos a ele, pois, ultimamente, só vinha contando mentiras as
pessoas”. As mentiras eram os delírios. Essa discussão entre verdadeiro e
falso, fato e mentira ou verídico e fantasioso, realmente merece atenção, mas
não sejamos cartesianos, tão racionalistas por verdades absolutas e do mesmo
modo que no encontro com o cliente, não teremos, aqui, respostas prontas e
lineares. As contas do tempo, do espaço e da vivência da experiência da vida
humana segue uma métrica bem diferenciada, em que o somatório de dois mais dois
dificilmente será quatro.
Há uma frase do
dramaturgo Nelson Rodrigues que diz que “não há nada mais falso do que uma
entrevista verdadeira”. Na ocasião, Nelson se referia as entrevistas formais em
que o entrevistado tinha que ser educado, diplomático e, como envolvia um sem
número de leitores ou ouvintes, teriam que dar respostas vagas e insinceras. Pode-se
aventar, aqui nesse artigo, que essa suposta insinceridade ocorreria em maior
ou menor grau nas situações das narrativas nas psicoterapias ou análises, mesmo
que se revele “verdades” e “fatos” que só poderiam ser revelados nesse setting. Freud, inclusive, levando em
consideração essas “derrapagens” do discurso recomendava que, em análise, era-lhe
mais importante a realidade psíquica do que as factuais – quando essas eram
trazidas por familiares, por exemplo. Segundo seu pensamento o “trauma” de
fantasia teria o mesmo vigor que um “trauma” de realidade. O “trauma” de
fantasia teria elementos e implicações mais significantes para a construção do
que chamou de neurose – falarei mais adiante, voltemos a Nelson Rodrigues.
Essa tentativa de relacionar o texto desse
dramaturgo com a psicanálise é muitas vezes criticada devido ao próprio ceticismo
que Nelson tinha em relação à psicanálise. Há uma frase famosa que diz: “o
psicanalista é uma comadre bem paga”, que apesar de soar como uma brincadeira –
provavelmente destinada ao amigo e psicanalista Hélio Pellegrino – certamente destacava o tom jocoso com a teoria
freudiana. Também participava do seu
discurso irônico, a personagem descrita nas crônicas publicadas no Jornal o
Globo que se chamava “A Estudante de Psicologia
da PUC” – uma jovenzinha – como denominou, “culta e politizada” – com idéias
radicais que iam desde ideologias radicais revolucionárias à psicanálise
ortodoxa.
Na verdade, se
observarmos com mais minúcia, o leitmotiv
psicanalítico encontra-se, paradoxalmente, em toda a tragédia de Nelson
Rodrigues. Peças, Álbum de Família, Vestido de Noiva, Beijo no Asfalto, Dorotéia,
entre outras, trazem temas que provavelmente seriam raros antes da introdução
do saber freudiano: transgressões, desejos recalcados e incestuosos, ideias de
culpa e castração. Para se ter um exemplo, a peça Vestido de Noiva, que na ocasião revolucionou o teatro brasileiro, tem
o cenário montado em três planos: da alucinação, da realidade e da memória,
três planos que lembram bem os elementos de parte da metapsicologia freudiana:
inconsciente, consciente, pré-consciente.
Valéria de Juliano – tradutora da peça para o idioma italiano – cita que
incontestavelmente a peça “sofreu forte influência da psicanálise da primeira
metade do século XX”. E o que fazia de Nelson tão opositor ou provocador? Parece
que o incômodo do dramaturgo era essencialmente a visão caricata e
esteriotipada com que as pessoas aderiam a novas formas de conhecimento. Estas visões
lineares, doutrinárias, muitas vezes, contribuíam na banalização ou na
simplificação de teorias bem mais complexas, fato que se observou e ainda se observa
na difusão da psicanálise. Uma vez soube
de um roteiro de entrevista “psicanalítico” onde se fazia uma espécie de anamnese,
na tentativa de “estruturar” o discurso do paciente. Nesse questionário teria
várias perguntas, algumas bem surpreendentes, como: você já odiou seu pai? Já gostou
de sua mãe? Já se sentiu castrado? Sente-se recalcado? Tem algum complexo?... Ora,
se a psicanálise se inspira no conceito de livre associação onde o
cliente-paciente pode e deve falar livremente o que ocorre a cabeça, como
podemos fazer um roteiro de entrevista? Além do mas, com perguntas tão
absurdas, só se teria respostas absurdas – voltamos à frase de Nelson
Rodrigues: “nada mais falso que uma entrevista verdadeira”.
Em psicanálise,
sabe-se, desde o início, que os discursos, por mais francos que sejam, não são tão
verdadeiros, e o que se busca não são fatos ou os “traumas” que ocorreram na
história de um sujeito, mas tenta se investigar
“traumas” – narrados espontaneamente – que não ocorreram, mas que de algum modo se
imaginou terem ocorridos, “traumas” que se denominou de “traumas de fantasias”.
Se é de fantasia que importância teria? Ou
que sentido tem em se fantasiar? Voltemos a Nelson Rodrigues.
Num pequeno
romance, “A Mentira”, vários personagens trazem à tona seus desejos após a
revelação de um acontecimento que envolveu a adolescente, a filha mais jovem da
família. Atribuindo-lhe uma gravidez precoce, o transcorrer do texto vai
desencadeando entre os familiares, pai, irmãs, mãe, cunhados, o desvelamento de
várias “verdades”, antes jamais ditas ou sequer pensadas: desejos incestuosos,
transgressores, perversos, enganos, ressentimentos, revelações de traições. No final do texto, um equivoco ou uma mentira é
trazida à tona – enfim, era fruto de uma fantasia, mas essa fantasia não desfez
toda série de revelações.
Com esse texto
podemos pensar que em todo sujeito algumas fantasias estão sustentando vários
desejos ainda não revelados ou ainda desconhecidos e esses desejos vão constituir a própria
ideia de fantasia. O que seria então a fantasia? “Uma fantasia é apenas o produto
e a máscara das manifestações espontâneas do desejo” (Laplanche & Pontalis).
No romance de Nelson a partir de uma relação equivocada, desencadeou-se uma
sucessão de desejos. Do mesmo modo, podemos fazer uma reflexão na ocasião em
que atendemos alguém, quando seus delírios, por mais absurdos que sejam, vem à
tona. Aquelas “mentiras” (como disse o familiar) estão a serviço de uma trama
de desejos e de “verdades”. Obviamente que não devemos fazer do delírio um
fato, o que seria um erro técnico, mas saber que nele vem carregado um sem número
de vivências do paciente.
Originariamente publicado em 16/09/2012
Originariamente publicado em 16/09/2012
Marcos
Creder
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