“Os que
acreditam em "formação", sabem que é preciso se preparar para a
empreitada, ela é longa , é preciso austeridade, leituras e muito esforço”
J.M.Coetzee
J.
M. Coetzee é um escritor sul-africano, Nobel de Literatura de 2003. Autor de
ficção, ensaios de crítica literária, memorista e tradutor. Sua obra explora
temas delicados e contundentes, tais como o totalitarismo, censura e a tortura,
porém não esperemos um autor que ataque diretamente à realidade. Seus personagens,
muitas vezes, vivem aprisionados a monólogos, em uma luta constante pela
interação entre as pessoas em um mundo onde o convívio verdadeiramente humano e
o diálogo parece haver se perdido ou aniquilado pelo poder institucional. É comum
seus personagens deslizarem entre o medo e a esperança, em tramas baseadas no
terreno movediço dos afetos, das fantasias, dos sonhos e dos pesadelos.
Seu último livro, “A Infância de
Jesus” (2013), encontra-se recentemente publicado no Brasil pela editora Companhia das
Letras. Não se trata – como o título pode sugerir – de um livro sobre Jesus
Cristo, como é o caso do “Evangelho Segundo Jesus Cristo” de José Saramago,
embora faça alegoricamente uso da figura emblemática de Jesus. O Jesus em questão
é um garoto que, conjuntamente um outro personagem adulto, ambos refugiados e
que se conheceram na jornada, chegam a uma cidade indeterminada chamada Novilla,
onde recebem novas identidades (o menino se chamará David, o homem, Simón) e têm que aprender a língua do lugar. O
homem e a criança se conheceram no barco de onde fogem e que os leva ao novo lar, Simón se
apieda do menino sozinho que, inclusive, havia perdido um bilhete onde estava
escrito quem era, de quem era filho e para que e por que estava indo a Novilla.
Kelvin
Falcão Klein, em sua resenha no O Globo escreve: “Não há dúvidas de que se
trata do relato de uma infância, a de David, mas seria ele, em um universo
alternativo, o Jesus que conhecemos? Talvez um dos objetivos de Coetzee seja
justamente questionar aquilo que conhecemos da História, aquilo que vem de
forma automática ou instintiva quando se pensa no passado. Porque a leitura de
“A infância de Jesus” oferece um contínuo jogo entre expectativa e realização,
um jogo exasperante, no qual Coetzee arma uma série de atrasos e adiamentos que
carregam de tensão o romance”.
Há algo
de antiutopia na história, afinal a Novilla é uma cidade onde as pessoas vivem
uma vida anulada de afetos, paixões e emoções; até o apetite sexual inexiste. A
vida lá é, literalmente, insossa, e tudo é bastante regrado, apático e
limitado. A entrada de estranhos e estrangeiros à localidade – onde devem
abandonar velhos hábitos incompatíveis com esta sociedade estilo espartano de
disciplina e ordem – é uma verdadeira passagem de um mundo anterior de paixões para
um outro baseado nos ideais de serenidade e razão. Acompanhamos cumplicidamente
a luta adaptativa dos dois a esta nova e estranha forma de se viver. E é David
quem mais sofrerá as agruras e as consequências de sua inadequação a ordem
social vigente, enquanto Simón tenta quixotescamente auxiliar David.
Evidente
que estamos frente uma sociedade de regime autoritário onde tudo é controlado e
que serve de cenário para a infância de Jesus. Existem passagens que evocam ou insinuam sutilmente vários elementos bíblicos e, poeticamente, Coetzee constrói em tons de fábula
seu romance. David resiste a aceitar a ordem aceita passivamente por todos e
que busca eternizar a rotina e os comportamentos. Como o próprio Jesus da
Bíblia, ele ameaça a ordem establishment.
Quem é a mãe de David? Nem ele sabe seu rosto, nome e paradeiro. Se ela existir e estiver viva em
Novilla ela também terá uma nova identidade, será uma outra pessoa. Em um trecho quando Simón é interpelado
por uma funcionária do Centro de Reubicación (onde são “apagadas” as
identidades antigas) esta lhe diz: “E essa mãe anônima? Tem certeza que ela quer reencontrar o filho?
Pode parecer desalmado dizer isso, mas a maioria das pessoas quando chega aqui
perdeu o interesse nas antigas relações.”
Não se iluda o leitor que estamos
frente a um texto fácil, afinal ele é permeado de camufladas metáforas sobre
a passividade frente à vida e ao mundo hoje. A ingenuidade dos habitantes, a
apatia, a falta de emoções faz parte do logos
sistêmico, por onde caminham os personagens de David e Simón em busca da mãe do
primeiro. Acabam encontrando uma mulher, Inês, que aceita o papel de mãe a ela
delegado. Os três, assim, passam a constituir uma nova e estranha família.
David – sempre recusante em abandonar seus antigos hábitos, lembranças e
identidade – necessita até se fingir de “normal” para não vir a ser internado
em uma escola para crianças excepcionais: os diferentes.
O
livro é uma grande jornada em busca de uma vida nova em um mundo novo, uma
sociedade distópica cujo universo totalitário e estatal encontra eco em outro
romance, 1984, de George Orwell. Não aceitando uma vida padronizada e
ideologicamente dominada, repressora dos afetos e modeladora de comportamentos
servis e ordenados, os personagens centrais procuram avidamente seu
estar-no-mundo, sem com isto perderem o bem mais importante que têm: sua
própria autenticidade.
Muito
mais do que uma alegoria sobre a educação de um garoto em uma sociedade, A
Infância de Jesus, é um libelo sobre a mansidão das pessoas onde suas
subjetividades são anestesiadas em nome de uma ordem social pacificadora dos
apetites, das paixões e dos sentimentos.
É
necessário, portanto, trazermos em nós um olhar de estrangeiro.
Joaquim Cesário de Mello
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