QUEM lê um ou outro artigo
meu, deve ter percebido que sempre tendo a repetir e recomendar algumas
obras literárias. E que sou insistente. Não
será necessário muito esforço para suspeitar que “A Divina Comédia” é um desses
livros. Não me lembro exatamente quando li pela primeira
vez e, suponho que uma das razões que me motivou a leitura da Comédia foi uma uma recordação de minha infância.
Contaram-me de que um adolescente da vizinhança teria lido esse livro. Tomara o volume por acaso da extensa biblioteca do pai, e desde que iniciara a
folhear as primeiras páginas, desenvolveu, por assim dizer, uma obsessão pelo
texto. lia e relia, tornara-se excêntrico, e por fim, enlouqueceu. Tivera um “surto”, necessitou por toda vida ficar em tratamento médico e psicológico, chegando a, nas crises graves, necessitar de
internamentos prolongados..
Nunca
o vi em crise, mas rezava a lenda que, já no primeiro surto, sob influência do texto de Dante, teria se trancado no quarto e sido encontrado,
horas depois, com os olhos congelados no espelho e com páginas do livro
espalhadas pelo chão. As interpretações para a loucura desse rapaz eram atribuídas a densidade da “Divina
Comédia”, seus poemas eram fortes e “desestruturantes” - comentaria um psicólogo. “Não tinha maturidade para tanto”, concluía. Essa relação entre loucura e esforço intelectual ainda é citada pelos seus familiares como principal argumentar da causa de sua doença mental.
Esse fato, essa lembrança, me
marcou significativamente e sempre que olhava as imagens referentes à “Divina
Comédia”, principalmente as do Inferno – ilustrações clássicas de Gustave Doré
–, provocavam-me medo e ao mesmo tempo uma profunda curiosidade. Afinal, que tinha
nele de tão enlouquecedor? Perguntava-me. Penso que lá pelos 15 anos, tentei
fazer uma primeira leitura, e, por alguma razão, achei um texto difícil e sem
graça – devo ter desistido ainda nas primeiras páginas. Aos 19 anos, já
estudante de medicina, reli e gostei, mas não tanto como hoje. E, por que hoje
eu gosto mais? Porque algo me instigava a relê-lo, reli mais algumas vezes e, a
cada nova leitura, abriam-se páginas e mais páginas de um texto cheio de
nuances, nuances de uma beleza poética que só gradativamente iria ter condições
de degustar.
* * *
Há uns anos,
escrevi uma peça que foi encenada algumas vezes no Hospital da Tamarineira e,
posteriormente, em instituições “psis”. A peça era inspirada na biografia da
poetisa portuguesa Florbela Espanca.
Centrada no poema “Maria das Quimeras”, que tivera sido escrito no
momento em que Florbela estava internada em um hospital psiquiátrico. A peça
iria fazer uma ponte entre o poema e o conteúdo
biográfico que havia em seus versos. O processo de criação foi relativamente
simples, cruzei os dados biográficos com o cenário natural de um manicômio e
essa mistura não podia dar em outra coisa: em imagens semelhantes ao Inferno de
Dante. Formou-se, no desfecho das últimas cenas, uma sucessão de falas que
misturavam poemas, portugueses, gritos desesperados dos loucos e citações
textuais de Cantos da “Comédia”. Mas haveria mais elementos desses cruzamentos
que viriam a me surpreender mais adiante. A poesia “Maria das Quimeras” narrava as
fantasias de uma poeta devastada:
Maria das Quimeras me chamou
Alguém...Pelos castelos que eu ergui
P'las flores d'oiro e azul que a sol teci
Numa tela de sonho que estalou.
Maria das Quimeras me ficou;
Com elas na minh'alma adormeci.
Mas, quando despertei, nem uma vi
Que da minh'alma, Alguém, tudo levou!
Maria das Quimeras, que fim deste
Às flores d'oiro e azul que a sol bordaste,
Aos sonhos tresloucados que fizeste?
Pelo mundo, na vida, o que é que esperas?...
Aonde estão os beijos que sonhaste,
Maria das Quimeras, sem quimeras...
Alguém...Pelos castelos que eu ergui
P'las flores d'oiro e azul que a sol teci
Numa tela de sonho que estalou.
Maria das Quimeras me ficou;
Com elas na minh'alma adormeci.
Mas, quando despertei, nem uma vi
Que da minh'alma, Alguém, tudo levou!
Maria das Quimeras, que fim deste
Às flores d'oiro e azul que a sol bordaste,
Aos sonhos tresloucados que fizeste?
Pelo mundo, na vida, o que é que esperas?...
Aonde estão os beijos que sonhaste,
Maria das Quimeras, sem quimeras...
O poema, meio
infantil, fazia um apelo por sonhos e fantasias inalcançáveis – que dariam
justamente o significado da palavra "Quimera".
Mas esta palavra trazia uma ambiguidade semântica que só posteriormente
veio a me surpreender: a palavra Quimera também se referenciava a uma figura monstruosa
da mitologia grega, uma besta de duas cabeças, de leão e de cabra (ou
serpente), que soltava fogo pelas narinas e devastava as cidades. Essa
monstruosidade era irmã de Cérbero, o cão de três cabeças que está descrito
como “a fera-monstro mais perversa” no Canto VI do Inferno de Dante. Enfim,
tudo se cruzava: o hospício, a loucura, a imagem da desesperança, o poema, a
literatura e a arte.
Só depois de muitas apresentações
que tive, por assim dizer, outros
insigths. Naquela peça, em algum lugar do texto, eu parecia homenagear, ou
recordar aquela criança que enlouquecera com a “Comédia”. Mas seria mesmo uma homenagem? Ou eu estaria
ali, apenas relatando a minha maneira – a única forma possível – de ler Dante sem enlouquecer?
* * *
Dante encontra-se atualmente na
moda, inclusive, há um novo romance de Dan Brown intitulado do “Inferno” que
traz na capa a imagem do autor medieval.
Provavelmente deve ser uma daquelas tramas policialesca que pouco ou
nada acrescentará à leitura da “Divina Comédia”. Recomendo, contudo, aos
recifenses que não percam a exposição de Salvador Dali no Caixa Cultural, no
Marco Zero, que pinta em aquarelas, cem Cantos desse maravilhoso texto.
Marcos Creder
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