Mais
uma vez pego carona em Joaquim Cesário que escreveu os excelentes artigos “A
Alma Cinza” e “Com Raiva no Coração” e faço aqui um cruzamento entre os dois textos – a raiva e a irritação distímicas estão aqui de braços dados. Pensei,
assim como ele, em escritores e personagens da literatura, lembrei especialmente,
entre muitos distímicos, de um brasileiro.
O grande homenageado na FLIP (Feira de Literatura
de Paraty) nesse ano é considerado um dos mais irritados dos nossos escritores. Falo de Graciliano Ramos, cuja obra literária considero maravilhosa e muitas
vezes esquecida - o fato de
sermos “apresentados” ainda tão jovens aos bons autores ajuda, de certo modo, a
esquecê-los. No colégio, colocamos as aulas de literatura, matemática,
física, química, história, no saco dos preparativos do vestibular. Voltemos a
Graciliano.
Seu humor irritado e pessimista é memorável e, por vezes, cômico. Há várias passagens de sua vida que seus contemporâneos trazem à tona o seu temperamento: ao cumprimentá-lo com um “bom dia”, o crítico Otto Marie
Carpeuax teria ouvido de Graciliano: “tem certeza disso?”; José Lins do Rego ao
lamuriar da situação de pobreza que as pessoas e, inclusive, os escritores estavam passando, teria dito: “desse jeito vamos acabar pedindo esmolas”, no que
Graciliano indagou “a quem?”; o ensaísta
Luciano Oliveira no seu livro “o Bruxo e o Rabugento” – com ótimos textos sobre Machado de Assis e
Graciliano – chamou-me atenção pelo
misto de bom humor e mau humor, da pessoa e do personagem Graciliano Ramos. Luciano
conta que o Velho Graça - como era chamado - ao revisar consigo mesmo textos para
jornais teria resmungado “outrossim... outrossim é a puta que o pariu” , testemunhou Franklin Oliveira. Graciliano irritava-se com as adjetivações, com os excessos de conjunções e seguia a regra
de que revisar um texto é enxugá-lo incansavelmente, assim “como faziam as
lavadeiras alagoanas retorcendo os panos úmidos” (analogia do Próprio Graciliano). Esse
mau humor não era apenas dirigido aos outros, era dirigido sobretudo à sua obra: “a publicação de Caetés,
seria um desastre, porque o livro é uma porcaria. Não me lembro dele sem raiva.
Não sei como se escreve tanta besteira”. Sobre sua experiência no presídio e a
ameaça de morte teria dito:
“Eu era bem insignificante e a
minha morte passaria despercebida, não serviria de exemplo. E se me quisessem
elevar depois de finado, isto seria talvez prejudicial à reação: dar-me-iam papel
de mártir, emprestar-me-iam qualidades que nunca tive, úteis à propaganda,
embrulhar-me-iam em folhetos clandestinos, mudar-me-iam em figura notável”
Cabe saber, diante dessa autoflagelação literária, se o escritor levava o que dizia à serio, se utilizava da falsa modéstia ou se realmente era
muito autocrítico. Provavelmente todas essas afirmações eram verdadeiras, sua obra, de certo modo, sintetiza esse impasse. A autocrítica é necessária à produção de textos por que, como fez Graciliano, impõe
recortes e reconstruções necessárias. Se a primeira escrita fosse a definitiva certamente haveria imperfeições, falhas e excessos e redundâncias desnecessários - tendemos, no primeiro texto, a
nos iludir com o que escrevemos, o narcisismo de nossas palavras nos faz, provisoriamente geniais. Sentimo-nos como um novo Flaubert ou um novo Dostoievsky - injustamente desconhecido; com mais algumas releituras e correções, contentamos que nosso texto esteja, quem sabe, no mesmo nível de um articulista de jornal; se houver mais minúcia ou nos demorarmos na revisão: “como pude escrever tanta besteira!”. A obra do escritor é um texto eternamente em revisão, mesmo depois de
publicada. E assim, com singular obstinação, corrigia-se o irritável e distímico ( uma forma de patologia psiquiátrica do mau humor) Graça.
Uma pergunta se impõe, mesmo que aparentemente absurda? Até que ponto esses destemperos contribuíram na construção de sua obra, ou invertendo, até que ponto Graça escritor livre das rabugices continuaria escritor?
Recentemente estive num Congresso de Neurociência e ouvi provocações semelhantes do convidado Eduardo
Giannetti. A mesa discutia questões de neurociências e Criatividade. Giannetti,
serenamente perguntou: se medicássemos todos
os melancólicos, distímicos enlutados ou ansiosos da história da literatura e
da filosofia – das artes em geral – será que continuariam criadores? Será que
justamente o impasse que os levaram à melancolia não teria sido justamente o
que impulsionou sua criação? Essas perguntas certamente estava e ainda está longe de ter respostas.
Seria minimamente irresponsável
dizer que aos avanços da neurociência nada tem a contribuir à saúde, e que
medicar seria apenas o sinônimo de mascarar. Há inegáveis avanços na qualidade
de vida de pessoas que sofrem de eventos depressivos-ansiosos,
moderados e severos, com os avanços da psicoterapia e da medicina. Muitas vezes,
esses eventos, contrariando o que se afirmou acima, podem, pelo contrário, frear a produção
intelectual e arruinar prováveis realizações. No
entanto, tudo que se noticia no mundo da medicina em nome da “felicidade”, há excessos. E nesses excessos, tende a se patologizar fenômenos
existenciais e dissabores da vida humana. Medica-se costumeiramente a tristeza quando se deveria
medicar apenas a depressão, medica-se muitas vezes “jeito de ser”! sem, contudo, obter êxito.
Concordo com Giannetti quando questiona que não devemos abortar todo sofrimento. A falsa
felicidade é a extirpação do sofrimento, e se somos tão felizes, se somos a
plenitude, ou como diz a gíria “se nós nos achamos”, qual o sentido da criação?
Marcos Creder
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