Fotografar é registrar um momento, certo? Certo. Há quem queira fotografar um instante para mais do que guardá-lo na lembrança. Mesmo que assim seja, uma foto tão prosaica, faz-se necessário atentar os olhos ao momento em que se vive e se quer registrar. Embora nem sempre quem fotografa amadoramente perceba ele está mediando ângulo, foco, efeito luminoso, escolhendo momento. No ato de fotografar fragmenta-se a realidade em um recorte. Diz o poeta Carlos Drummond de Andrade que a "fotografia é o codinome
da mais aguda percepção
que a nós nos vai mostrando
e da evanescência de tudo,
edifica uma permanência
cristal do tempo no papel".
Certa vez disse o fotógrafo austríaco Ernest Hass, pioneiro da fotografia em cores, "a câmara não faz diferença nenhuma. Todas elas gravam o que você está vendo. Mas você precisa ver". A captação de uma imagem fotografada é, primeiramente, a captação da percepção do sujeito que olha e vê. A partir do momento que alguém desejou tirar uma foto, isto é subjetividade. A escolha da cena ou do objeto a ser fotografado, e seu melhor ângulo, isto é subjetividade. O que se deseja fotografar do instante e o que se deseja passar em forma de retrato, isto é subjetividade. Quando se dá visibilidade ao que passaria desapercebido, isto é subjetividade. Quando se eterniza o segundo esquecível, isto igualmente é subjetividade. Não há fotograma sequer que não tenha em si a subjetividade de quem a tirou. Ou como escreveu Machado de Assis, "o olho do homem serve de fotografia ao invisível, como o ouvido serve de eco ao silêncio".
É neste sentido - acima descrito - que a mais simples das fotografias é por excelência fenomenologia. O retrato é, pois, a prova documental da ligação entre a dimensão perceptiva humana e o mundo sensível. Como dissera o semiólogo e filósofo Roland Barthes, a fotografia é uma imagem louca tocada pelo real. Acaso quisermos nos atentar a própria etimologia da palavra fotografia (foto = luz, grafia = escrita ou representação), então não nos soará estranho e nem nos causará qualquer perplexidade afirmar que fotografar é desenhar com a luz um espelho de memória. Pode ser que muitas fotos de álbuns familiares decididamente não sejam arte, visto ter apenas a intencionalidade da reprodução. Porém a verdadeira arte em fotografar está em interpretar com o olhar a realidade. Assim fica fácil entender o que disse Henri Cartier-Bresson (por muitos considerado o pai do fotojornalismo) ao afirmar que "fotografar é colocar na mesma linha de mira a cabeça, o olho e o coração".
A relação entre o fotógrafo e o fotografado - e aqui não falo daquelas fotos casuais em que o que somente se quer é se ver à frente de pontos turísticos ou com grupo de amigos e festinhas de aniversários - vai além da intencionalidade de quem olha, pois fixa mais do que o olhar humano é capaz de fixar. A foto, diz o filósofo e sociólogo alemão Walter Benjamim, contém muito mais do que o fotógrafo é capaz de perceber no instante em que clica sua máquina. Aspectos da realidade que antes estariam invisíveis ao olhar tornam-se agora visíveis no retrato do instante captado. A fotografia, afirma Benjamim, revela novas dimensões da realidade, dimensões estas que ele denominou de "inconsciente ótico". Em sua próprias palavras: “a natureza que fala à câmera não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente". Dentro da perspectiva Benjaminiana uma imagem fotográfica não dá apenas a ver um objeto, fato ou evento, mas igualmente inaugura um campo de possibilidades ao criar e mobilizar um leque de associações por aquele que contempla.
Quem fotografa, consciente e inconscientemente, está a flagrar o que nele se vê. O olho-sujeito e o objeto fotografado é intermediado pela máquina fotográfica que nos amplia e potencializa o olhar. Vejamos o exemplo do filme Blow Up, de Antonioni. Nele o fotógrafo contempla e fotografa e um casal em uma paisagem. Depois, revelando a foto e a ampliando o que se vê é uma cena de crime. O imperceptível aos olhos, mas que porém estava ali, tornou-se exposto no granular do alargamento e da amplificação. Assim, como escreve João Frayze-Pereira, em seu livro Arte, Dor - Inquietudes entre Estética e Psicanálise, o registro intencional do visível é surpreendido pelo invisível que inadvertidamente pode se dar a ver.
Há um mundo de imagens habitando as coisas miúdas e o muito rápido que estão suficientemente ocultas ao olhar natural e limitado de quem as vê. Um retrato, uma foto, uma imagem fotográfica representa, portanto, uma espécie de mergulho no fluxo vital da duração do efêmero. Uma fotografia, desse modo, nada mais é do que o aprisionamento do tempo perdido. Por isso pensou Clarice Lispector ser a fotografia um "retrato de um concavo, de uma falta, de uma ausência". E aquilo que antes ali estava torna-se ao mesmo tempo congelado, único e irrepetível.
Há uma realidade interior intrínseca à trama de qualquer imagem fotográfica, e a isto chamamos da história oculta da mesma. A realidade fotografada é apenas um lado, aparente e externo, de uma micro-história que se iniciou muitas vezes silenciosamente a partir do desejo e do olhar de quem fotografou. Ao se registrar uma cena presentifica-se, para quem depois a vê, fragmento do diminuto de uma história passada e distante transformada em imagem. Há geralmente embutida no registro expressivo da aparência, que se passa a nível da percepção, uma outra realidade, subjetiva e uterina, que nem sempre corresponde a ressurreição de uma cena agora estática. Um outro retrato: um retrato vivo de uma coisa morta.
Fotografia, voltemos a enfatizar, não é mera imagem, é também sentimentos, desejos, olhares e pensamentos. Em uma foto existe algum quantum de subjetividade, modelos de percepções e ideias que se encontram investidos e encravados no processo de construção de um retrato. A subjetividade que o ato de fotografar nos propõe se configura na analiticidade do mundo. Um olhar fotográfico e analítico sobre o mundo não é o mero duplicar de uma imagem vista, mas sim uma subjetividade que se objetiva, ou como refere o filósofo francês Régis Debray: "aquilo pelo qual vemos o mundo constrói simultaneamente o mundo e o sujeito que o percebe".
Certa vez disse o fotógrafo austríaco Ernest Hass, pioneiro da fotografia em cores, "a câmara não faz diferença nenhuma. Todas elas gravam o que você está vendo. Mas você precisa ver". A captação de uma imagem fotografada é, primeiramente, a captação da percepção do sujeito que olha e vê. A partir do momento que alguém desejou tirar uma foto, isto é subjetividade. A escolha da cena ou do objeto a ser fotografado, e seu melhor ângulo, isto é subjetividade. O que se deseja fotografar do instante e o que se deseja passar em forma de retrato, isto é subjetividade. Quando se dá visibilidade ao que passaria desapercebido, isto é subjetividade. Quando se eterniza o segundo esquecível, isto igualmente é subjetividade. Não há fotograma sequer que não tenha em si a subjetividade de quem a tirou. Ou como escreveu Machado de Assis, "o olho do homem serve de fotografia ao invisível, como o ouvido serve de eco ao silêncio".
É neste sentido - acima descrito - que a mais simples das fotografias é por excelência fenomenologia. O retrato é, pois, a prova documental da ligação entre a dimensão perceptiva humana e o mundo sensível. Como dissera o semiólogo e filósofo Roland Barthes, a fotografia é uma imagem louca tocada pelo real. Acaso quisermos nos atentar a própria etimologia da palavra fotografia (foto = luz, grafia = escrita ou representação), então não nos soará estranho e nem nos causará qualquer perplexidade afirmar que fotografar é desenhar com a luz um espelho de memória. Pode ser que muitas fotos de álbuns familiares decididamente não sejam arte, visto ter apenas a intencionalidade da reprodução. Porém a verdadeira arte em fotografar está em interpretar com o olhar a realidade. Assim fica fácil entender o que disse Henri Cartier-Bresson (por muitos considerado o pai do fotojornalismo) ao afirmar que "fotografar é colocar na mesma linha de mira a cabeça, o olho e o coração".
A relação entre o fotógrafo e o fotografado - e aqui não falo daquelas fotos casuais em que o que somente se quer é se ver à frente de pontos turísticos ou com grupo de amigos e festinhas de aniversários - vai além da intencionalidade de quem olha, pois fixa mais do que o olhar humano é capaz de fixar. A foto, diz o filósofo e sociólogo alemão Walter Benjamim, contém muito mais do que o fotógrafo é capaz de perceber no instante em que clica sua máquina. Aspectos da realidade que antes estariam invisíveis ao olhar tornam-se agora visíveis no retrato do instante captado. A fotografia, afirma Benjamim, revela novas dimensões da realidade, dimensões estas que ele denominou de "inconsciente ótico". Em sua próprias palavras: “a natureza que fala à câmera não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente". Dentro da perspectiva Benjaminiana uma imagem fotográfica não dá apenas a ver um objeto, fato ou evento, mas igualmente inaugura um campo de possibilidades ao criar e mobilizar um leque de associações por aquele que contempla.
Quem fotografa, consciente e inconscientemente, está a flagrar o que nele se vê. O olho-sujeito e o objeto fotografado é intermediado pela máquina fotográfica que nos amplia e potencializa o olhar. Vejamos o exemplo do filme Blow Up, de Antonioni. Nele o fotógrafo contempla e fotografa e um casal em uma paisagem. Depois, revelando a foto e a ampliando o que se vê é uma cena de crime. O imperceptível aos olhos, mas que porém estava ali, tornou-se exposto no granular do alargamento e da amplificação. Assim, como escreve João Frayze-Pereira, em seu livro Arte, Dor - Inquietudes entre Estética e Psicanálise, o registro intencional do visível é surpreendido pelo invisível que inadvertidamente pode se dar a ver.
Há um mundo de imagens habitando as coisas miúdas e o muito rápido que estão suficientemente ocultas ao olhar natural e limitado de quem as vê. Um retrato, uma foto, uma imagem fotográfica representa, portanto, uma espécie de mergulho no fluxo vital da duração do efêmero. Uma fotografia, desse modo, nada mais é do que o aprisionamento do tempo perdido. Por isso pensou Clarice Lispector ser a fotografia um "retrato de um concavo, de uma falta, de uma ausência". E aquilo que antes ali estava torna-se ao mesmo tempo congelado, único e irrepetível.
Há uma realidade interior intrínseca à trama de qualquer imagem fotográfica, e a isto chamamos da história oculta da mesma. A realidade fotografada é apenas um lado, aparente e externo, de uma micro-história que se iniciou muitas vezes silenciosamente a partir do desejo e do olhar de quem fotografou. Ao se registrar uma cena presentifica-se, para quem depois a vê, fragmento do diminuto de uma história passada e distante transformada em imagem. Há geralmente embutida no registro expressivo da aparência, que se passa a nível da percepção, uma outra realidade, subjetiva e uterina, que nem sempre corresponde a ressurreição de uma cena agora estática. Um outro retrato: um retrato vivo de uma coisa morta.
Fotografia, voltemos a enfatizar, não é mera imagem, é também sentimentos, desejos, olhares e pensamentos. Em uma foto existe algum quantum de subjetividade, modelos de percepções e ideias que se encontram investidos e encravados no processo de construção de um retrato. A subjetividade que o ato de fotografar nos propõe se configura na analiticidade do mundo. Um olhar fotográfico e analítico sobre o mundo não é o mero duplicar de uma imagem vista, mas sim uma subjetividade que se objetiva, ou como refere o filósofo francês Régis Debray: "aquilo pelo qual vemos o mundo constrói simultaneamente o mundo e o sujeito que o percebe".
Joaquim Cesário de Mello
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