domingo, 7 de junho de 2015

O NARCISISMO E AS PEQUENAS DIFERENÇAS






Comumente chamamos uma pessoa de narcisista àquela que apenas ama a si mesma. Diríamos até que elas não amam, mas só querem ser amadas ou, mais precisamente, admiradas. Suas escolhas amorosas são baseadas na própria imagem de si. A eleição do objeto de amor não deixa de ser um modo particular de relação com a sexualidade. Melhor vejamos.

Quem pela primeira vez introduziu  o termo narcisismo no âmbito da psiquiatria e no estudo da saúde e da doença mental foi Paul Nacke, em 1899, ao designá-lo como uma espécie de perversão. Para Nacke narcisismo é uma atitude do sujeito com seu corpo, tratando-o como um objeto sexual. É como se a pessoa se masturbar-se pensando em si mesma. Já para Freud um certo grau de narcisismo faz parte da natureza humana. Diz ele: " Um indivíduo que ama priva-se, por assim dizer, de uma parte de seu narcisismo, que só pode ser substituída pelo amor de outra pessoa por ele".

Embora o desejo narcísico de completude seja irrealizável no real, o psiquismo humano conserva, em graus variados de pessoa para pessoa, tal idealização, afinal a realidade psíquica não é coincidente com a realidade externa. Eis aqui, então, o cerne da questão abordada pelo presente texto: desejo x realidade. A alma narcisicamente ferida busca se curar na promessa de completude que pensa encontrar no objeto (pessoa) que lhe atrai e lhe fascina. Projeta-se nesse objeto as fantasias idealizantes de um objeto perfeito e pleno. Tão perfeito e pleno que juntos se completarão na extinção de todas as faltas e anseios. O objeto narcisamente idealizado, portanto, é projetado no objeto externo, até o fatídico instante inaugural das primeiras diminutas frustrações. O objeto externamente colorido de idealizações não é o objeto internamente procurado. O outro em sua existência concreta não condiz com a exatidão das fantasias. A realidade mais uma vez se instala com o gosto amargo da decepção.

O maior desafio para uma alma humana se relacionar e amar uma outra alma humana é reconhecer a existência do outro sem ela e, assim, poder buscar o encontro e aprofundar o vínculo. E isto requer de cada alma envolvida a capacidade de tolerar as diferenças e o diferente. Nem somos a extensão de um outro nem o outro é a extensão de nós. Uma relação assim pautada nem é uma relação anaclítica nem uma relação narcísica, mas sim uma relação entre dois sujeitos que transitam e lidam com a realidade. 

Todavia, embora o discurso manifesto nosso seja com ênfase na alteridade, não é fácil à mente aceitá-la de maneira imediata. Reconhecer as diferenças é reconhecer a falta e a impossibilidade de suprimi-las totalmente. Aceitar psicologicamente a diferença e o não igual é aceitar a castração sobre o narcisismo, afinal perde-se a onipotência e a perfeição. Habitualmente chamamos de "ferida narcísica". Se a alma humana lá de suas profundezas indizíveis pudesse falar, provavelmente diria algo tipo "o que de mim difere me ameça". Por isto não é difícil compreender que a mente originariamente narcísica passe a reconhecer um outro como diferente há de acontecer uma mudança psíquica para poder caber na relação amorosa o estranho que habita dentro do objeto amado. O reconhecimento e a confirmação do diferente é o avesso do narcisismo. 

Se o narcisismo se opõe e se impõe sobre a diferença estamos no âmbito da intolerância, onde subjaz oculto uma recusa à realidade. O filósofo Schopenhauer foi muito feliz quando introduz a conhecida parábola dos porcos-espinhos que com frio invernal precisam se juntar para se aquecerem. Isto só é possível se encontrarem entre eles uma distância moderada. Escreve Schopenhauer: "assim a necessidade de companhia, nascida do vazio e da monotonia do próprio interior, impulsa os homens a unirem-se; mas suas muitas qualidades repugnantes e defeitos insuportáveis os conduzem a se separarem uns dos outros. A distância intermediária que ao final encontram e na qual é possível que se mantenham juntos é a cortesia e os bons costumes".
Uma relação amorosa verdadeiramente objetal (não dependente e não simbiótica) é aquela onde duas pessoas vivem juntas separadamente. Ou como diz o poeta Afonso Romano de Sant´anna "condenado estou a te amar nos meus limites". Sim, o amor se ama com limites e no reconhecimento e respeito aos limites. Não se iluda, caro leitor(a), não é tão simples à alma humana tolerar a especificidade do outro. Diferenças, mesmos as pequenas, podem provocar no narcisismo humano estranheza e até hostilidade.
Em um dos mais cultuados livros do século XX, Eu e Tu (1923), do filósofo e pedagogo Martin Buber, enfatiza a inexistência humana sem comunicação e/ou diálogo. O ser humano, escreve Buber, nasce com a capacidade para o encontro com o outro e ao interrelacionamento. Uma relação entre dois sujeitos independestes é uma relação dialógica entre o EU e o TU. Em sua filosofia do encontro de Buber o par EU-TU é uma relação recíproca e viva, onde o TU configura o EU e vice-versa. É um voltar-se para o outro onde o outro (TU) é discriminado e acolhido pelo EU. Trata-se de uma interrelação entre dois EUs autônomos e distintos, com algumas semelhanças, mas também com suas diferenças.  


Um par, um casal, é formado de duas individualidades e de uma conjugalidade. Philippe Caillé, por exemplo, destaca que a lógica de um casal é 1 + 1 = 3. Duas identidades pessoais e uma identidade de casal. Uma verdadeira relação amorosa não sacrifica a individualidade, de um ou de ambos, mas sim as preserva ao mesmo tempo que se constrói a unicidade casal. Trata-se de um conviver maduro entre duas pessoas onde não se confunde a interdependência com a dependência. Não são duas metades que se unem para formar um "par perfeito", porém duas unidades que se relacionam com alegria, respeito, prazer e amizade. O psiquiatra Flávio Gikovate diz que um amor bem resolvido cura o individuo do "mal de amar"


Nem precisa gastar tanta "tinta e papel" pra se dizer que o segredo para um relacionamento longevo e satisfatório está em saber praticar a aceitação de que o outro não é nem igual a mim, nem igual aos meus ideais de um outro. Romantismos à parte, uma relação amorosa não se sustenta apenas com o amor. Algumas renúncias devemos fazer para permanecer com o outro escolhido para se conviver pela vida. Não é um outro qualquer, afinal o objeto a quem dirigimos nossos sentimentos ternos nos gratifica, nos alegra, nos dá prazer e nos faz bem. Apenas que o objeto não é perfeito nem ideal. E há nele (para que o objeto seja um TU e não um ISSO) características e pessoalidades que não gostamos ou podemos não gostar; contudo, na relação da balança custo-benefício, os aspectos positivos são maiores e predominantes. O objeto tem qualidades que para o sujeito pode ser defeito. Muito do que chamamos de defeito no outro são qualidades que não gostamos, e vice-versa. Mas não é porque não gostamos de tudo no objeto amado que o faz um objeto sem qualidades ou defeituoso. 


O narcisismo resiste ao outro e a tudo que lhe seja divergente ou, como canta Caetano Veloso, "Narciso acha feio o que não é espelho". Freud, mais uma vez Freud (que fazer, né?), afirma que do "narcisismo das pequenas diferenças" deriva a hostilidade que luta contra o sentimento de companheirismo e o amor ao próximo. Creio que esteja certo o poeta Manoel de Barros quando versa que "a maior riqueza do homem é a sua incompletude".

O escritor italiano Giovanni Papini certa vez escreveu que "ninguém se trocaria por um dos seus semelhantes, mas todos se trocariam pelo seu sonho. Porque o homem quer conquistar, mas sem deixar de possuir. Deseja a continuidade do eu". Quem não tolera a mínima diferença do outro (seja ele cônjuge, filho, amigo, vizinho, enfim o outro enquanto sujeito) só parece aceitar a se relacionar com ele como se esse ele fosse um "alter ego" e não um ego que não lhe pertence, que não deseja tudo o que o narcísico deseja, que não sonha os sonhos dele, que não pensa igual a ele e que não faz ou se comporta como se ele fosse. É como se o outro não fosse o que o outro é, mas um espelho a refletir a continuidade de quem eu sou ou a completude da minha não aceita imperfeição. 
"É absolutamente normal e inevitável que a criança faça dos pais o objeto da primeira escolha amorosa. Porém, a libido não permanece fixa nesse primeiro objeto: posteriormente o tomará apenas como modelo, passando dele para pessoas estranhas, na ocasião da escolha definitiva. Desprender dos pais a criança torna-se portanto uma obrigação inelutável, sob pena de graves ameaças para a função social do jovem." - eis Freud em sua mais pura essência, para lembrar ao eventual leitor aqui presente que se ninguém é igual a ninguém - como dizia Drummond - pois todo ser humano é um estranho ímpar, lidamos continuamente com estranhos, afinal o mundo, o mundo todo e inteiro, além de mim, é um imenso mundo de estranhezas e estranhos. Ou, como igualmente diz o poeta Fabrício Carpinejar, sempre estranhamos o outro quando não faz o que desejamos.

Sim, o estranho é aquilo que de mim é diferente. Sim, o estranho é algo que não nos é familiar, diferente. Sim, duas ou mais pessoas, por mais próximas e parecidas que sejam, são relações entre similitudes e diferenças. Sim, toda e qualquer relação interpessoal e intersubjetiva é sempre uma relação que familiariza dois estranhos. Sim, na inquietante zona em que o outro não é igual a mim e nem eu igual ao outro é que se encontra o encontro, e a intimidade deixa de ser uma pessoalidade a dois e passa a ser uma convivência. O EU encontra o EU do TU, e o EU do TU encontra EU. Só assim, e somente assim, podemos falar em amor. O resto é cavilação.


Joaquim Cesário de Mello

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