Na adolescência li um livro que do nada caiu nas minhas mãos. Estava escondido por trás de outro livros, encadernado com letras douradas e lombada vermelha, tinha, inclusive, uma tira de tecido como marcador, enfim, lembrava livros infantis vistos nos filmes de bruxa ou de contos de fadas - falo assim, porque acho que toda coisa escrita carrega mitos e magias; livros não são tão enfeitiçados como imaginamos, mas assim como uma bruxa lê em voz alta palavras encantadas, as palavras dos livros, de qualquer livro, pode nos encantar. Do livro que encontrei ao acaso, percorri-lhe as primeiras páginas, e assisti ao narrador/personagem - um escritor - trazer a sua miséria: Vender textos para reduzir-lhe a fome. Cada publicação rende-lhe algumas refeições e paga as despesas da modesta moradia . Assim como seus textos, o personagem vende objetos pessoais para que, do mesmo modo, sacie a fome. O estranho e o enigmático é que a única alternativa que o personagem encontra para sobreviver é pelo seu ofício. Somente escrevendo que se come. O que está em jogo é a manutenção da vida, e a vida do personagem é manter-se escritor. Manter-se escritor é esticar a corda entre a necessidade e o desejo. Comer é a necessidade, escrever é desejar.
O livro “Fome”, do escritor Norueguês Knut Hamsun, escrito no século XIX, em 1890, subverte a literatura da época - para quem lê nos dias de hoje, julgará atual, fato que fez o escritor Thomas Mann chamá-lo do “maior escritor de sempre”. Apesar de desconhecido, acredita-se que Hamsun influenciou a literatura ocidental. Hansum é capaz de criar do seu personagem um rico diálogo - melhor dizendo, um monólogo interior - trazendo sempre à tona as questões sobreviventes. Na verdade, a fome está lá, mas também está, em igual ou maior intensidade, na insaciedade do literata.
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Sabe-se que os primeiros estudos sistemáticos dos transtornos alimentares datam do início e de meados do século XX - uma pergunta que se faz com muita frequência: antes disso não havia anorexia nervosa? Possivelmente sim, mas em menor proporção e menos visibilidade. Podemos dizer que, assim como os eventos do dia-a-dia humano, as doenças tem lá seus “modismos”. Há no humano uma insaciedade, uma necessidade de manter padrões do ideal. O ideal de corpo, por exemplo, dos nossos tempos, séculos XX e XXI são diferentes dos do século XXVIII e XIX - as roupas, nestes tempos, eram volumosas e as mulheres ideais eram mais gordinhas. Quando observamos o fenômeno da anorexia nervosa, condenamos, de maneira desavisada, a jovenzinha de corpo desnutrido ou esquelético, julgando-a fútil. contudo, a jovem da atualidade, busca, e por vezes adoece, um novo padrão de corpo ideal. Do mesmo modo que o personagem de Hansum, a fome está, aqui, a serviço da satisfação narcísica do permanente desejo de ser melhor, de superar-se - coisa bem humana, por sinal. Há um desejo de se satisfazer a custo da restrição. A fome sustenta na novela norueguesa a estética do texto e o desejo de ser escritor, a fome está para a jovem modelo a serviço da estética de corpo - o corpo gótico imposto na atualidade.
A ideia que as pessoas tem de seu próprio corpo é escassa e as suas interpretações subjetivas, tem significativa influência no corpo psíquico - é, inclusive, possível emagrecer ou engordar psiquicamente, sem perder ou ganhar um grama do corpo fisiológico. O corpo enfim, é uma atribuição de valores, que flutuam de acordo com os ideais de uma sociedade. Os que exageram, adoecem. A fome em Hansum e na anorexia é saciada por coisa nenhuma.
Marcos Creder
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