Como estou já algum tempo envolvido
na elaboração do meu próximo livro, cujo título é “As Raízes da Felicidade: um
estudo sobre o psiquismo humano”, não poderia deixar de rever um filme que
marcou minhas retinas e minha alma. Trata-se do filme “Felicidade” (Happiness)
do inquieto diretor do cinema independente americano Todd Solondz. Conhecido
por seu estilo sarcástico e, principalmente, por suas críticas à classe média
americana, há em sua obra um misto de comicidade e drama. Parece que nada lhe
escapa ao modo de vida suburbano ou a pequena burguesia ascendente.
“Felicidade” retrata um apanhado
grupo de pessoas interligadas aqui e ali por laços de parentesco ou laços
sociais. Todos vagueiam pela existência como que atordoados, tristes e
desesperados. Há a femme fatale que embora devore homens a torto e a
direito continua insatisfeita. Há aquela também que vive a cata do homem certo
e a que é casada com um psicólogo atraído por garotos púberes. Há ainda, entre
outros, aquele cara suado e bufante que tem dificuldade em relações com as
mulheres e que, por isso mesmo, procura satisfazer-se por meio de telefonemas
obscenos com mulheres desconhecidas. Ao invadirmos a privacidade e a intimidade
perversa e miúda dos personagens somos levados a sentir pena deles, assim como podemos
sentir pena dos vizinhos, caso não olhemos pro nosso próprio umbigo.
Cruel e contundente, irônico e
cínico, o filme nos leva a acompanhar seus fracassados afetivos na busca
obstinada pela felicidade. Masturbações, taras, pedofilias e sem-vergonhices à
parte, o filme é cru, raivoso e melancólico com a coitada da nossa condição
humana. É o tipo do filme que nos deixa com aquele gosto estranho e amargo na
boca. E por que, então, o cito aqui? Por ser uma estonteante e vertiginosa aula
sobre as entranhas do comportamento humano. Filmaço, porém não para quem tem
intestinos fracos ou acredite no “bom selvagem” de Rousseau.
A matéria bruta de que somos
inicialmente feitos é a natureza e os instintos. Hobbes dizia que “somos o lobo
do homem”, enquanto Freud referia que a criança é “um perverso polimorfo”. Seja
qual seja a forma de expressarmos nossas origens primitivas lembremos que,
assim como ninguém nasce vestido, o psiquismo humano também não. Para nos
tornarmos humanos conjugaremos nossa raiz animal com cultura, e se antes éramos
tão somente um feixe de instintos e reflexos nos tornamos igualmente um ser de
moral e sociabilidades.
Do nosso berço biológico herdamos
nossa inaugural animalidade, enquanto do nosso berço psicossocial herdamos a
cultura e os seus interditos. Humanizados somos, assim, um eterno conflito
entre desejo e moral, entre o instinto e a sociedade, entre o bestiali e
o ethos, entre o Id e o Superego. Quem, por exemplo, comete um crime
brutal e hediondo não é um monstro, mas sim um ser humano em que lhe falha as
defesas e os interditos. Um ser humano em que, ao perder as principais
características que lhe qualifica de humano que são a solidariedade, a empatia
e a compaixão, retorna a sua mais pura barbárie primitiva e canibalesca.
Um filme como “Felicidade” não
navega apenas pelos corredores subterrâneos da alma humana, mas também busca
investigar o que é isso que o ser humano tanto procura e que chamamos de
felicidade. Alguém já disse – creio que Tchekcov – que a felicidade não existe
e que não somos felizes, apenas podemos desejá-la. Claro que o arquétipo de
felicidade é uma miragem e lá chegando a mesma se dissolve como uma enganosa
fumacenta ilusão. Entretanto, talvez, a felicidade possível seja algo mais ou
menos parecido como escreveu Érico Veríssimo, ou seja, “felicidade é a certeza
de que a nossa vida não está passando inutilmente”.
Não é o que acontece com os
personagens engendrados por Solondz em seu filme. Eles parecem viver à beira de
um abismo, vivendo suas vidinhas monótonas e tediosas como andarilhos
estonteados e perdidos. Todos, embora não se percebam, estão como que
condenados à infelicidade. A infelicidade de uma vida marcada pela pequenez e
pela apatia. Vidas sem sentido. Vidas à margem da própria vida.
Quem é feliz? - pergunta-nos o
diretor com a acidez de seu filme. Aliás, como ser felizes na superficialidade
da existência e da convivência social. Será que os personagens (e nós neles
espelhados) são culpados pelo que fazem ou só fazem o que fazem por serem
vítimas? Há certa incomunicabilidade entre eles, como se cada um, a seu modo e
maneira, fosse omisso com os demais seres humanos. Faltam-lhes caritas e
carecem eles de um mínimo de bondade com o alheio. Como se pode ser, portanto,
verdadeiramente feliz vivendo vidas voltadas unicamente aos umbigos e problemas
íntimos e pessoais, feitos hipocondríacos a perscrutar seus interiores e, com
isto, afastando-se de se lançarem autenticamente ao encontro de outro.
“Felicidade”, assim, expõe como
fratura os pequenos horrores e sordidezes dos cotidianos descompromissados e
enfadonhos das vidas mesquinhas e acanhadas, quase como se narrasse uma crônica
de uma infelicidade crônica.
O fecho do enredo apresenta-nos um
término antológico quando o casal mais velho do filme, que estão nos estertores
de um longo casamento de 40 anos, reúne a família e, escondidos pelas máscaras
e vernizes sociais, brindam à felicidade. Neste instante entra o garoto púbere
eufórico e feliz por ter finalmente ejaculado pela primeira vez na vida e grita:
gozei. Será, então, isto que é felicidade: um alegrar de um rápido gozo? Creio
que não. Apenas concordo com a escritora portuguesa Inês Pedrosa quando diz que
“não é de serem felizes que as pessoas têm medo; é de escolher – da
responsabilidade da escolha, do compromisso que ela acarreta”.
“Felicidade” é vencedor de vários
prêmios a sua época, entre eles o da Crítica Internacional em Cannes e o Metro
Media Award de Toronto. Um filme realizado já tem mais de dez anos (1998), mas
que não é datado, nem poderia, afinal nada é datado no lado escuro e oculto da
alma humana.
Joaquim Cesário de Mello
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