O garçom me serve uma bebida forte à base de aniz, com a qual me vejo invadido de quentura e azul. Imediatamente zonzo pelo sabor do inusitado, abro o livro marcado somente para não perceber que as outras mesas desconhecem minha presença. Sou um estranho entre pessoas estranhas e elas sabem disso. Estou longe de casa. Estou longe de mim. Meu lar é lugar nenhum.
Esta cidade edificada de ruas com nomes e datas que não me dizem nada, arranha-céus, árvores, praças, postes e luzes não foi construída para mim: sou um estrangeiro em suas entranhas e sombras, transitando-a apenas como o minuto que perpassa a minha vida. Os rostos dessa gente não me significam coisa alguma, não me importa suas dores de dentes, amores e desamores, sequer sei dos seus vizinhos. Para eles sou transparente e não existo, unicamente habito esta cadeira neste momento, em um bar que nunca vim.
O que pensa a lua de mim aqui sentado sem amigos ou amantes? Como um surdo aguardo que me chamem o nome, este substantivo próprio tão doce e delicado que só se sente à falta dele no deserto das bocas áridas. Devo ter deixado minha história em um quarto de hotel e agora não sofro mais qualquer nostalgia. Esqueço-me de mim para lembrar das minhas ausências e dos meus prantos. Sobrevivo aos meus mortos e aos meus abandonos, só não quero morrer sem ver meus poemas publicados, pode ser que alguém algum dia me leia e me compreenda além do silêncio em que me sepultei. Minha cabeça lateja em um corpo amolecido de febre e gripe. Tusso secreções e esta imensa noite que carrego no peito.
Quisera-me ser um barco a navegar a imensidão infinita dos oceanos azuis. Minha alma é um mar agitado, perigoso, sem sol e sem sal, em busca de praias onde possa sossegar suas ondas e depositar espumas agonizantes. Quem penso que sou boia em mim. Receio afogar-me sem história e sem nome, enquanto aqui o redor fervilha em música na urdidura das tramas pélvicas. O calor que me aquece e me esfria não é de febre nem de álcool, é do incêndio desta cidade alheia onde procuro o socorro de uma mão e não encontro. O que se estende até a mim é solidão.
Chamo o garçom novamente, mais uma vez, como forma de falar com alguém. Solicito e ele me atende com outro copo. Logo vai embora. Nada me apraz o olhar, nem mesmo aquela velha prostituta de cabelos mal pintados de ruivo encostada ao canto do escuro, pronta a me saquear bolsos, filhos e afagos. Chego a me apiedar cumplicidamente dela e de sua indisfarçável decadência, pois representa seu papel e ao final adormecerá só em sua cama, assim como eu. Se me desse vontade de escrever versos começaria com a palavra adeus, porém minha única vontade é saber para que estou e para onde vou quando não mais houver esta cadeira, o copo e o garçom a me servir. Quando todos já tiverem se abrigados, restarão meus cacos, as pálpebras insones e este cansaço mais que febril. Tusso secreções reprimidas e esta grande noite que me aprisiona a garganta e me domina o peito.
Retorno cambaleante ao quarto e às minhas malas onde lá encontro partes de mim. Persigo o sono e só assim ao levantar não saberei se tudo não passou de um sonho ou de um pesadelo do instante em que fui ninguém. A sinusite dói e a coriza me escorre afetos e líquidos. Quero rápido dormir para logo acordar com alguém que não conheço chamando meu nome. Preciso urgentemente voltar a existir. Hoje, é certo, não sonharei com anjos, mas prostitutas.
Tusso secreções e a noite inteira me acoberta de breus.
Joaquim Cesário de Mello
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