Andei lendo e relendo Jorge Luiz Borges e vários de seus contos me chamam atenção por diversas razões. O que mais me interessou nessas releituras, está na sua forma de narrar - e o que muito me encanta na literatura de ficção em geral - , o diálogo imaginário que o escritor estabelece com seus personagens, que na verdade são representações de sua própria pessoa é maravilhoso. É impossível fugirmos da autobiografia intrínseca ao texto de ficção. Uma vez vi um filme, que não me recordo o nome em que o escritor-personagem confessava ao filho que sua ficção tentava contar histórias verdadeiras se utilizando de invenções imaginárias. Borges conseguiu encontrar literária e literalmente com vários Borges personagens, alguns, inclusive, com seu nome e sobrenome, fragmentações só possíveis na estética da literatura fantástica, como por exemplo, encontrar consigo próprio em outro país e/ou em outro tempo. Refiro-me aos contos 25 de agosto de 1983 e O Outro. Obviamente, o escritor ao se utilizar desses recursos, tenta trazer à tona suas questões existenciais, de maneira que provoque algum sentimento naquele que lê, leitor que conhece superficialmente a vida do autor ou, até mesmo, que não tem a menor ideia de como viveu. Esse foco dos conflitos subjetivos do qual Freud insistiu nos textos que discorreu sobre a sublimação, foi, por assim dizer, muito explorado e interrogado; Freud se impressionava com a arte de fazer da subjetividade do autor a catarse do leitor. Entretanto, afirmava que esse misterioso desencadear de sentimentos era privilégio do artista
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Esse é o caso de um autor turco praticamente desconhecido no ocidente, mesmo sendo da turquia de dominação francesa, chamado Secrèr Damor - Li seu texto ainda adolescente numa coletânea de "melhores contos da literatura mundial contemporânea" (não sei se era esse realmente o título) no final dos anos 70. Confesso que, na tentativa de colher mais informações ou imagens para esse blogue, pus no Google seu nome, da maneira como imaginei que fosse escrito, e a únicas palavras que ocorreram ao corretor foram: você não quis dizer ‘Amor Secreto’. Não quis: estava, em verdade, a procura de um autor que pelo visto era secreto à maioria das pessoas.
O conto seguia a lógica fantástica de Borges: era a história de um autor teatral, o próprio Damor, que tentava procurar uma atriz para interpretar uma personagem que muito estimava, fruto de recente criação. Isso não era uma tarefa fácil, a personagem na cabeça do autor era tão perfeita, tão nítida na sua imaginação, que achava improvável encontrar qualquer mulher que pudesse representá-la. Se não me engano a personagem chamava-se Emme, ou seja mais francesa que turca, enfim, uma mulher de outro continente, uma mulher do outro mundo.
O conto continuou: … até que um dia na frente de um dos teatros mais conhecidos de Istambul, no centro cultural Attatürk, o autor se depara com a própria personagem. Esse encontro apesar de idealizado nunca foi, obviamente, esperado, era algo da dimensão do impossível, e nessa viabilidade fantástica gerou-se diversos desdobramentos. O autor pôde constatar que o que procurava era uma atriz que jamais encontraria, pois sequer sabia da personagem. A personagem tinha nuances que só mesmo um encontro fantástico poderia se conhecimento. Era mais bela, maís altiva, mas determinada, enfim, estava bem longe do seu criador.
Sabe-se que na Turquia o teatro de sombras e o de marionetes são conhecidos mundialmente e a metáfora que o autor quis deixar nas entrelinhas é de que sua personagem na verdade era uma mulher de verdade, uma mulher como jamais tinha visto antes, enfim, uma mulher sem os cordéis das marionetes. No mesmo encontro o autor sentiu um grande incômodo dominá-lo de maneira involuntária. Era sua timidez, sentimento que havia ressuscitado da infância e que muito desapontou. E, desse modo, o encontro foi mais breve do que teria imaginado se tivesse menos tenso por essa timidez. Esse comportamento fez com que deixasse escapar alguns questionamentos. Um deles: que fazia aquela mulher na frente do conhecido teatro? - um teatro tão familiar aos turcos como o (teatro) Valdemar de Oliveira aos pernambucanos. A única pergunta que pode ser feita veio a cabeça veio de forma circunstancial e ingênua:
- E a peça? como vai a peça?
- Sabia que você ia perguntar isso! - respondeu desapontada
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A magia do texto de Damor era justamente o impasse que havia entre a mulher fruto da imaginação teatral e a mulher de verdade. A Emme desse conto de Damor estava no lugar privilegiado, na intercessão entre ela e sua representação: estava na porta do teatro, era mulher de carne e osso, e por essa razão, mais bela e apaixonante - a que tinha construído na imaginação estava muito sob seu controle, era mais personagem e menos mulher - mulher apenas no desejo do homem. Por fim, o personagem, alter ego de Damor, volta para casa sozinho, mas ainda no momento da despedida a mulher saudou-lhe erguendo uma das mãos que revelou na palma uma tatuagem com olho de Hórus. Essa cena trouxe-lhe sentimentos antagônicos, sua timidez parecia ceder mesmo com aquele olhar incisivo da palma da mão.
No caminho de casa tentava classificar os erros na construção da personagem, mas o seu pensar perturbava-se com a experiência do pequeno encontro. Distante da cena percebeu que não só a timidez o havia paralisado. A beleza, a voz, e a meiguice de Emme estavam lá, bem a sua frente, emudecendo-o. Haveria outras coisas que poderiam ser atribuídas ao seu silêncio? Haveria sim, certamente, mas essas verdades seriam deixadas para o próximo encontro.
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Nesse belo texto e em muitos outros pude observar quão polifônico é o texto literário, o quanto ele tenta nos dizer, sob diversas formas as nuances de uma experiencia metafórica ou real, subjetiva ou coletiva; ou ainda, o quanto nos faz perguntar - algumas perguntas, irrespondíveis.
Marcos Creder
2 comentários:
Brilhantemente sugestivo!!!!
Fantástico!
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