Recomendou-se, aqui no
LiteralMente, como sugestão de férias o filme “Underground” de Emir Kusturica,
um filme realmente inesquecível e marcante – marcante por várias razões, entre
elas a qualidade, o tema, o texto, num momento em que rareavam os filmes de boa
qualidade. Muitas vezes recordamos de filmes por cenas, closes, locações, ou por uma lembrança de algum ator
ou atriz; em “Underground” o que me marcou foi uma pequeno diálogo travado
entre dois dos três personagens principais, o casal Natalija e Marko. Numa cena
romântica, com intenso e proposital histrionismo, os dois se abraçam. Natalija dirige-se ao parceiro indagando quem
seria a mulher mais bonita que ele havia conhecido:
“Você”, responde Marko sem
pestanejar
“Você diz mentiras tão lindas”,
conclui ela com um beijo cinematográfico.
“Underground” é um filme que
poderia ser desdobrado em dezenas de discussões, mas nesse artigo de hoje vou
destacar o tema ambíguo da mentira, que de algum modo permeia todo o filme,
desde uma cena de amor até as inverdades ideológicas que costumamos edificar.
A mentira é uma característica
própria do humano, como diz Dostoiévski “é o único privilégio do homem sobre todos os outros animais”. Desse
modo, o personagem Pinóquio, da fábula italiana, já era humano desde o momento
que dissera mentiras e não apenas quando tivera sido autorizado a sê-lo pela
fada madrinha – essa fada, em si, é uma imagem igualmente mentirosa, mas necessária
para a estética narrativa da literatura infantil.
Alguns autores falam que a
própria transposição dos atos em palavras já carrega o fato do discurso em
elementos fantasiosos ou imaginativos. Groddeck, médico fortemente influenciado
pelo pensamento freudiano, dizia que a mentira surge com a linguagem e com o
desejo, e esse desejo inconsciente, faz com que mintamos, ou venhamos a falar
inverdades que acreditamos piamente.
Há
um pequeno texto de Freud que considero muito importante que trata do fenômeno
da negação (para alguns, denegação – o texto chama-se “A Negativa”) que seria o
fato do sujeito fazer afirmações imperativas que na verdade são inversas de seu
pensar ou de seu desejo inconsciente. Alguns exemplos: um sujeito depois de
perceber que o amigo tinha errado para menos na conta de um restaurante, diz:
“se você achou que o eu pensei que você foi desonesto, está enganado”; ou outra pessoa vem à psicoterapia: “eu
vim me consultar porque queria melhorar minha relação conjugal, pois a separação
é algo que jamais me passou pela cabeça”; ou ainda: “pode parecer coincidência, mas o meu
atraso de hoje não tem nada haver com seu atraso na semana passada, o que seria
um pensamento infantil”. Essas três
afirmações já mentem na própria lógica do discurso - como é possível não pensar
no pensado? Se foi evocado, foi pensado
e por essa razão, o primeiro sujeito por algum momento pensou na desonestidade
do amigo na conta, a pessoa que veio a consulta veio na verdade para saber se
ainda levaria o casamento adiante – sentia-se entediado na relação – e o terceiro chegou atrasado como uma forma de
retaliação ao atraso do outro. São três verdades complicadas de serem ditas e,
por serem complicadas, algumas seriam inaceitáveis por conta de desejos impossíveis
de serem expressos. Desse modo, há verdades que jamais serão ditas, porque
jamais serão conhecidas, ou as mentiras a elas atreladas tem função de
verdade.
Qual, então, o sentido de
ouvirmos o outro sabendo que parte do que disse é discurso de um mentiroso
contumaz? Que valor tem a verdade se, como diz Machado de Assis “A mentira é muita vezes tão
involuntária como a respiração”? Para o filósofo Nietzsche há uma falha
epistêmica na busca da verdade. Segundo ele, tanto na ciência quanto na religião
caímos em inverdades. Na ciência, em especial, o erro, ou o embuste, teria uma
utilidade: um erro útil. Na religião os mitos sustentariam o horror ao niilismo
– aliás, nas ciências também. Nietzsche acreditava que a verdade é insuportável
e a forma mais aproximada de se ter algo semelhante a ela seria pelo caminho da
arte – em especial a arte trágica. O
pintor Pablo Picasso vai mais longe: “A arte é a mentira que nos permite conhecer a verdade”. Exageros
à parte, partilho mais da ideia do escritor Oscar Wilde que no texto irônico “a
decadência da mentira: um protesto”, relata
que, no passado, os recursos alegóricos ou mitológicos da filosofia grega, eram mais
verdadeiros que discursos dos filósofos contemporâneos que professam um
pensar verídico.
Enfim, uma das únicas formas que
o ser humano tem para se chegar próximo a verdade é, paradoxalmente, pelo
caminho da ilusão. Somos seres de existência fantasiosa e Freud soube muito bem
constatar esse fato ao relativizar a verdade humana em realidade psíquica. Essa
verdade, ou essa realidade, seria fruto de inúmeras variáveis, mas que teria
como pano de fundo o desejo. Se pudéssemos chegar perto da verdade em psicanálise,
teríamos que materializar o desejo, mas como ele é parte igualmente ilusória – muitas
vezes o desejo é justamente fruto do não poder desejar – mas uma vez nos
deparamos com o impossível. Desse modo, falamos e mentimos, mentimos “sem
querer”, sem saber, sem se dar conta, e na mitologia de nossa narrativa vem à
tona, como disse Lorde Byron, “a verdade mascarada”
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