Sempre considerei os sentimentos, os afetos e as
emoções como funcionais e adaptativos ao ser humano. Talvez bastante
influenciado por Freud e Darwin, talvez. Em termos evolutivos, creio, nossas
emoções básicas encontram raízes nos mecanismos de sobrevivência de nossos
ancestrais, entre eles a ansiedade e o medo. Todavia, de imediato, nos cabe
algumas diferenciações, tais como emoção e sentimento.
O afeto é um estado psicológico que nos possibilita
expressar emoções e sentimentos. Deste modo, a emoção, assim como os sentimento,
são afetos. Apenas que a emoção é um afeto abrupto que nos acomete
repentinamente; já os sentimentos são menos intensos e, portanto, mais
duráveis. Há algo de racional no sentir. Tanto as emoções quanto o sentimentos
advêm do sistema límbico cerebral.
Existem sentimentos que funcionam como uma espécie de
freezer, ou seja, assim como o sal e o gelo ajudam a conservar certos alimentos
alguns sentimentos servem para conservar outros afetos. É o caso da mágoa e do
ressentimento. Quer conservar raiva, por exemplo, cubra-a de mágoa e de
ressentimento, assim resguardarás a mesma por um longo, longo tempo.
A mágoa e o ressentimento significam sentimentos de
desgosto e descontentamento. É um afeto corrosivo que gera mal estar, aflição e
dor moral. A mágoa é como um envenenamento da alma, uma ferida que não
cicatriza, uma amargura sem perdão. Uma mágoa prolongada transforma-se em
rancor, este sim um ressentimento profundo decorrente da mágoa. O rancor,
assim, é uma agressividade contida que fica ali, como um jacaré no rio, pronto pro bote, isto é, esperando se expressar.
Shakespeare já dizia que “mágoa é tomar veneno e esperar que o outro morra”. Um indivíduo
magoado é um indivíduo alternado, e nisso o bardo inglês mais uma vez parece
certo: “a mágoa altera as estações e as
horas de repouso, fazendo da noite dia e do dia noite”. A mágoa é o orgulho
do sujeito ferido. Divergente da agressividade, do medo e da ansiedade que já
estão no humano como emoções primárias, a mágoa, o ressentimento e o rancor são
secundárias porque decorrentes. São afetos que nascem das interações humanas e
seus desentendimentos e frustrações. Não é necessário que uma outra pessoa
queira intencionalmente nos ofender para nos sentirmos ofendidos, nem que nos
magoe pra nos sentirmos magoados. Basta somente, às vezes, o outro não nos
corresponder o que dele queremos para isto por si mesmo gerar ofensa e mágoa. E
uma frustração no narcisismo humano tem como resposta a agressividade, a raiva
e o ódio. Assim, por detrás da mágoa esconde-se um ódio latente cozinhado em
fogo lento e brando.
E para não fugir da proposta do LiteralMente, remeto
o leitor ao filme argentino “Dois Irmãos”, de Daniel Burman, o mesmo diretor de
“O Abraço Partido”. Em ambos os filmes Burman explora as sutilizas e crueldades
das relações íntimas permeadas de dores, lutos, mágoas e culpas. Sem escorregar
pro melodramático, em “Dois Irmãos” a morte da mãe de ambos abre espaço pras
feridas familiares construídas ao longo de cerca de sessenta anos da vida dos
dois solteirões. Embora eles não consigam ficar juntos por muito tempo, também
não conseguem se separar. Ofensas e rusgas salpicam aqui e acolá, em um filme
denso, dramático, mas cheio de humor inteligente. A história quase inteira é um
desfilar de mágoas. E é como naquela famosa letra de música de Chico Buarque: “deixe em paz meu coração/que ele é um pote
até aqui de mágoa/e qualquer desatenção, faça não/pode ser a gota d’água”.
Sou daqueles que acreditam que há pessoas
vulneráveis à mágoa e ao ressentimento. Pessoas assim, geralmente trazem em si
uma ferida não curada, uma dor ainda não elaborada. É como um pé com calo. E
quando alguém nele pisa, ai!, que dor. A dor do agora é muito mais um reavivar
de uma dor anterior e interior, que estava ali como que adormecida e agora é
acordada. Quem, neste momento, não associaria a seguinte música e letra?: “quando a gente tenta/de toda maneira/dele
se guardar/sentimento ilhado/morto, amordaçado/volta a incomodar”.
O antídoto à mágoa e ao ressentimento é o perdoar e o absolver. Mas para que
isso ocorra de maneira autêntica se faz necessário o exercício da empatia, isto
é, colocar-se no lugar do “magoador”. Pode ser que muitas vezes vá se descobrir
que não houve nem má-fé, nem intencionalidade. Pode ser também que se formos
mais autocríticos e auto observadores percebamos até que grande parte do que
nos magoa já estava latente dentro de nós e tem muito mais a ver com nossas
carência, fragilidades e vulnerabilidades. É preciso, pois, “afogar a mágoa”,
não no sentido de “beber todas”, mas sim de lavar nossa alma com tolerância,
sabedoria e condescendência. É preciso ver que o mundo não nos magoa tão facilmente
assim. Nós é que nos magoamos só porque o mundo não é o que eu desejaria que
ele fosse: meu.
Joaquim Cesário de Mello
2 comentários:
Ótimo texto. Melhor ainda com uma indicação de filme. Estava lendo Nietzsche um dia desses, e me lembrei de uma passagem parecida com o que foi publicado nesse ultimo post. Me permita colocar aqui.
"...e nenhuma chama nos devora tão rapidamente quanto os afetos do ressentimento. O aborrecimento, a suscetibilidade doentia, a impotência de vingança, o desejo, a sede de vingança, o revolver veneno
em todo sentido -- para os exaustos é esta certamente a forma mais nociva de reação: produz um rápido consumo de energia nervosa, um aumento doentio das secreções prejudiciais, de bílis no estomago, por exemplo.
O ressentimento é proibido em si para o doente -- seu mal: infelizmente também sua mais natural inclinação -- isso compreendeu aquele profundo fisiólogo que foi buda. Sua "religião", que se podeira designar mais corretamente como uma higiene, para não confundi-la com coisas lastimáveis como o cristianismo, fazia depender sua eficácia da vitória sobre o ressentimento: libertar a alma dele -- primeiro passo para a convalescença.
"Não pela inimizade termina a inimizade, pela amizade termina a inimizade"...
Complementa perfeitamente o texto publicado no blog, inclusive a última frase: "Não pela inimizade termina a inimizade, pela amizade termina a inimizade". Valeu a contribuição, Felipe.
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