Em texto aqui publicado
no LiteralMente falei rapidamente dos personagens literários cuja subjetividade
e mundo interno de suas personalidades eram o motivo da própria narrativa.
Agora iremos dissecar um deles: Mrs. Dalloway, do romance homônimo da escritora
inglesa Virginia Woolf.
Mrs.
Dalloway é Clarissa Dalloway e a história se passa em apenas um dia de sua
vida, dia em que prepara uma festa.
Interessante, de cara, observar que a personagem não nos é inicialmente
apresentada por seu nome, mas sim pelo sobrenome do esposo. Em parte, muito
provavelmente, por causa do patriarcado vigente na Inglaterra do começo do
século XX. Todavia, penso, a autora nos oferta uma mulher cujo Eu é obliterado
a partir de um Outro. Iremos, então, iniciar uma viagem alma adentro e conhecer
o verdadeiro Self de Clarissa.
Começamos
com a personagem indo comprar flores e com ela o leitor é convidado
acompanhá-la através de seus pensamentos e do fluxo de sua consciência e de
outros personagens circundantes. Vamos sendo apresentados as suas lembranças
juvenis e seus amores e paixões. Em um verdadeiro strip tease literário sua intimidade vai sendo exposta, bem como os
sentimentos desta mulher cinquentona que se acha aprisionada a uma existência
frívola e sem muito sentido. Em seu universo psicológico passado e futuro se
fundem na ebulição de um monólogo interior por meio de um narrador onisciente.
Através do recurso da “visão múltipla”
Virginia Woolf nos leva à consciência de outros personagens que cruzaram com
Clarissa. O tempo psicológico do livro são cerca de 20 anos da personagem que
transita nas 24 horas do tempo cronológico.
Temos
uma mulher, embora se posicione no alto da pirâmide social, por dentro comum,
com seus medos, alegrias, tristeza, angústias, aspirações e frustrações. Uma
mulher forte e frágil que se depara com os ganhos e perdas de sua vida, assim
como suas escolhas. Uma mulher que escondida por detrás da mulher social
prepara festas e abafa seus gritos e sussurros. Uma mulher silenciosa que ama e
sofre como qualquer outra mulher, aliás, como qualquer outro ser humano.
A
depressão ronda Mrs. Dalloway. Ou melhor seria dizer que a depressão é a
essência feminina da alma? Sei apenas que a personagem vive o eterno embate
entre os ideais da juventude versus o conformismo da vida adulta e das
convenções sociais. Por isto é que a história de uma pessoa, a história de uma
alma, é uma história que se conta aos poucos e nunca termina, mesmo quando um
livro acaba ou se encerra uma existência.
No
desmascarar da personagem e no desnudar das aparências externas o que vemos é
um passado sonhador que chega ao presente pelos caminhos tortuosos dos
acontecimentos e das escolhas e se depara com seu antes futuro com certo olhar
de nostalgia e arrependimento. São três as Mrs. Dalloways: a que se expõe
publicamente, a que se esconde e se cala, e a que nunca foi e nunca será.
Igualmente são três os tempos presentes: o histórico, o cronológico e o
afetivo-emocional. Tudo se funde e se confunde em uma só pessoa, em uma só alma
que está sempre aqui e ali a transitar por entre o desejo e a frustração.
Clarissa
vive no equilíbrio de uma corda que a sustenta. As escolhas de seu percurso
basearam-se na busca pela estabilidade financeira, posição social e um
casamento contido e sem paixão. Seus dias consistem em ser boa esposa e boa mãe
que oferece festas e preocupa-se em cuidar de sua frágil saúde. Por debaixo do
pano desses mesmos dias uma mulher sonhadora aspira por sonhos antigos não mais
realizáveis. Soubesse ela antes o que depois seria teria agido com a vida e as
encruzilhadas desta com mais liberdade, ousadia e com mais amor? Quem sabe? Nós
nunca sabemos de antemão o que seremos, apenas vamos indo despercebidos do passar
das horas, dos dias e da própria vida.
A
memória em Mrs. Dalloway ajuda a mantê-la no equilibrar da corda. Ao atualizar
o seu existir a personagem se dá conta da alta voltagem que há entre as
desistências e as existências. O mundo dos afetos não possui o tique-taque dos
relógios. Pessoas, coisas e oportunidades passam, mas não os desejos. Eles
continuam lá de onde não saíram, como sonhos inconsumados. Insistentes, perenes
e permanentes, eles se grudam na pele de dentro como nossas máscaras sociais se
grudam na pele de fora.
Sim,
somos um constante intervalo entre o que fomos e o que seremos. Este enorme
intervalo que chamamos de presente que parece nunca terminar, até que chega o
instante em que olhamos pra trás e nos deparamos com o passado, mas não somente
com as lembranças do já ocorrido, mas também com as lembranças dos sonhos do
passado. Em todo nosso passado, de todos nós e de qualquer um, existe um futuro
do passado e um presente que não é como um dia idealizamos.
Joaquim Cesário de
Mello
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