ATRIBUI-SE A SÓFOCLES, dramaturgo grego, autor da peça
Édipo Rei, a frase: “tento retratar a vida como ela deveria ser, Eurípides retrata
como ela é...” na verdade, Sófocles falava de Medeia, umas das peças mais trágicas
da dramaturgia universal. Para quem não conhece o texto, a história dessa
personagem enigmática do teatro clássico pode ser resumida da seguinte forma:
Medeia, uma feiticeira, é abandonada por Jason, seu marido e pai de seus dois
filhos, por ter se apaixonado por Gláucia, filha do rei de Corinto. Medeia é tomada por uma dor intensa e por um
profundo sentimento de vingança. Acuada na sua crueldade, Medeia comete um dos
crimes mais horrendos já conhecidos, mata as duas crianças na tentativa de
punir e de se vingar do ex-marido.
Porque se falou que Eurípides em Medeia falou da vida como
ela é? Assistimos a esse crime diariamente? Se tomarmos como parâmetro “Édipo Rei”
– peça tão explorada pela psicanálise – , observa-se veladamente a repetição de
um drama familiar simbólico. O pai, a mãe, ou seus representantes são colocados
no lugar de rival e a cena trágica é apenas vivida de maneira reservada na angústia
da criança. Fantasia-se, por assim dizer, um parricídio, mas o pai está ali ao
lado, acarinhando e acalentando esse pequeno “criminosos de fantasia” – ainda
sim, invadido por uma imensurável culpa. Em Eurípides a repetição não é apenas
simbólica, não é de fantasia, mas de uma real agressividade. Medeia seria a
representação da maldade, da autodestruição, da vingança e da impulsividade.
Apesar das inúmeras leituras que esse texto pode desmembrar, darei, aqui, um
foco específico: o da agressão aos filhos.
Quantas vezes já ouvimos falar de mulheres e homens que em
função da frustração de rompimentos e separações conjugais, fazem dos seus
filhos armas e escudos para atingir o outro? Quantas vezes ouvimos dessas
pessoas, com um tom de uma suposta abnegação, que são dedicadas
“exclusivamente” aos seus filhos, enquanto que o outro é sempre distante, relapso,
desalmado, negligente e muitas vezes monstruoso? Certa vez, ouvi um relato em
que a mulher para afastar o ex-marido da filha teria o acusado de pedófilo. Em
outra ocasião, uma criança indagou a mãe porque ela tinha optado pela profissão
de prostituta – como ela era chamada na casa do pai. Um menino de apenas três anos chamava o pai
aos risos de “psicoPAIta”.
Pois então, aí está a crueza do mito de Medeia fazendo
translações na vida humana e no conceito de alienação parental. Observamos aqui, vividamente, essa personagem
se presentificar com todos os seus sentimentos horrendos. Medeia habita parte da condição humana, no
mesmo cômodo onde estão a inveja, a ira e a vingança, ao lado da dor e do
ciúme. Ressentida, como diz Shakespeare, “toma o veneno para atingir o outro”, e
acrescento, atingir aos outros. Ao contrário do mito de Édipo que, em geral,
atribui-se ao processo de subjetivação, em Medeia se assiste ao dano, muitas
vezes ao dano irreversível.
No final da
peça de Eurípides, a feiticeira foge de maneira altiva e impossível, toma um
carro em direção ao sol. O filósofo Aristóteles criticou esse final por
contrariar as regras da ‘poética’ trágica, que faz o fim da peça ser por
deveras inverossímil, em que o herói fracassa e a agente da tragédia escapa
ilesa – incolumidade trágica demais. Discordo em parte. entendo que o final da
peça, mesmo não sendo moralista, não é assim tão triunfante. Certamente, no
caminho do sol, a personagem corre o risco na sua ira desmedida de incendiar-se
no seu próprio ódio.
Marcos
Creder
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