domingo, 22 de outubro de 2017

Psicanálise, literatura e sonhos



Adolescente, assisti ao filme “O Enigma de Kaspar Hauser”, do aclamado diretor Werner Herzog. Guardo duas recordações paradoxais: o tédio e o fascínio. O tédio justifica-se pela idade, talvez me fosse mais adequado uma comédia de Jerry Lewis ou, se quisesse ser mais cult,  de Mel Brooks. Kaspar Hauser entediou-me  pelo silêncio e por  suas digressões filosóficas. Por outro lado,  o seu enredo, encantou-me: um homem criado misteriosamente em um calabouço, é repentinamente libertado, ou melhor, abandonado à rua. Prisioneiro, Kaspar Hauser, desconhecia o mundo exterior, não conhecia as imagens, as pessoas, a linguagem.  “Cavalo” era umas das poucas  palavras que pronunciava.

O filme revelou-se ainda mais fascinante na habilidade de Herzog em mostrar o ingresso desse misterioso personagem na vida social. Kaspar Hauser tornou-se objeto de estudos de cientistas e intelectuais da pequena comunidade que o acolheu.  Uma cena, em especial,  me vem com nitidez à mente. Kaspar Hauser, ainda com dificuldades de se expressar,  traz sua primeira experiência onírica, um sonho que foi percebido e confundido com fato real - um sonho como um delírio.


Seria o delírio uma formação semelhante a um sonho? Cabe aqui, destacar, os conceitos de delírio que se edificou, na psicanálise e na psiquiatria dos séculos XIX e XX. Um dos primeiros trabalhos que Freud utilizou a palavra delírio, foi no ensaio O Delírio e o Sonho na Gradiva de W. Jensen em que  faz uma análise  interpretativa da novela Gradiva, Uma fantasia Pompeiana do autor alemão e contemporâneo Wilhelm Jensen. Freud inaugura, nesse longo ensaio, publicado em 1906 (três anos após a publicação da novela e sete após A Interpretação dos Sonhos), as incursões da psicanálise na literatura de ficção, modalidade de texto que percorreria toda sua obra.

Na ensaio, Freud relaciona o delírio à vivência de Norbert, o personagem principal, que acreditou ter encontrado uma mulher (Gradiva, inspirada num baixo relevo napolitano) que teria vivido na cidade de  Pompeia, prestes a ser destruída pelo erupção do Vesúvio. Por curiosidade o verdadeiro baixo relevo encontra-se no Vaticano, é uma escultura romana que representa a dança de uma mulher - Freud tinha uma cópia desse relevo. A Gradiva imaginada se transformaria na Gradiva delirante, o personagem a vê, nas ruínas de Pompéia, como na realidade, convicção semelhante a experiência de um  sonho - Freud, inclusive,  compara a  formação do delírio à construção onírica, partindo do pressuposto de que os sonhos “são a realização (disfarçadas) do desejo (recalcado)”. Assim como o sonho, o delírio expressaria um enredo manifesto de conteúdo ideativo recalcado.  


Soa estranho pensar que uma experiência tão sofrida como o delírio, traga o desejo como pano de fundo. Há contudo, desejos e desejos. O desejo inacessível à consciência são conteúdos ideativos recalcados (e, no caso do delírio, extrojetados, percebidos como se ocorresse no mundo externo). Recalcados pois trazem conteúdos conflitivos e, consequentemente, podem gerar desprazer. No livro de Jensen, os conflitos são ingenuamente representados nos impasses do amor romântico -  Um jovem que encontra na Gradiva pompeiana, uma paixão recalcada na infância.  


O conceito de delírio é controverso contudo. No campo da psiquiatria seu conceito é mais delimitado. A psiquiatria discorre sobre o delírio como um fenômeno comum aos quadros psicóticos, especialmente, da esquizofrenia e da paranóia. Karl Jaspers, psiquiatra e filósofo fenomenologista, foi um dos primeiros teóricos a delimitar o conceito de delírio nas vivências anormais do pensamento (que chamou de juízo de realidade). O julgamento da realidade ou a capacidade de um delirante de ajuizar encontra-se severamente, e peculiarmente, prejudicada. o delírio não se restringe a um simples equívoco um a erro de entendimento. O pensamento delirante guarda uma  forte convicção, uma crença inabalável e irrefutável de um fato que não ocorre na realidade. O conteúdo desse fato, em geral, põe o delirante no centro da trama (não foi por acaso que Freud chegou a chamar a psicose de Neurose Narcísica).  

Jaspers, aos 23 anos, escreveu os dois volumes da Psicopatologia Geral (texto hoje esquecido pela atual psiquiatria), e especificou que o delírio primário, que também chamou de delírio verdadeiro, se caracteriza, não apenas pela não ocorrência do fato, mas pela interpretação dada pelo delirante - interpretações baseadas em percepções e intuições pouco convencionais, subjetivas. Se o delirante se diz perseguida pelos órgãos secretos norte-americanos, depois de vir a uma PETSHOP - "Cão&Cia" - e ver uma fotografia de um cão buldogue com o boné do presidente dos EUA (Donald Trump), o seu delírio eclodiu na ressignificação das palavras C.I.A. (órgão de inteligência dos EUA) e Cão (o demoníaco que se desliza para "do mal", e, para Trump) As palavras ganham novos e secretos significados que criptografadas revelam conspirações e tramas de perseguição.  

Desse modo, do ponto de vista psiquiátrico, “o caso” narrado por Jensen, se distancia do  conceito psicopatológico de delírio, por haver um distanciamento na "crença inabalável" do personagem. Contudo, se assemelha com o conceito de pseudologia fantástica (na psicopatologia fenomênica, uma alteração da imaginação),  ou mesmo de fantasia palavra muito utilizada na psicanálise, inclusive, utilizada no título da novela Jensen. Além do mais, no texto,  a imagem fantasmática de Gradiva, é que se impõe, e, desse modo, a construção não é do juízo de realidade (do pensar) mas da percepção de uma imagem inexistente - no caso da percepção sem objeto, da alucinação. Na novela, se utilizarmos da rigidez teórica de Jaspers, nem mesmo alucinação seria o caso, pois o objeto existe (Zoe), somente é deformado (Gradiva), e a deformação do objeto chama-se ilusão -  O personagem descobre que  Gradiva é na verdade a imagem de Zoe, uma mulher conhecida do seu passado. Diferente da alucinação, a ilusão é da natureza humana, independente de estrutura psíquica, está, contudo, fortemente influenciada por temores e desejos intrapsíquicos.


A defesa dada pelos psicopatologistas a essas aparentes filigranas conceituais  se deve a sua  importância semiológica. A investigação psicopatológica é um instrumento de grande serventia na avaliação diagnóstica dos transtornos psíquicos mais graves. Contudo, ao contrário do que se imagina, essas digressões não põe em xeque ou em oposição  os preceitos da psicopatologia freudiana. A psicanálise, na verdade,  acrescenta elementos subjetivos. Dois aspectos fundamentais destacam-se nesse ou no texto de Freud:  a ideia de que delírio encarcera um “desejo”. Encarcerando o desejo, encarcera algo de verdadeiro - o delírio traz  no seu conteúdo um grão de verdade. Mesmo que provisória, a verdade do sujeito.

A publicação de A interpretação dos sonhos, fez com que o saber de Freud, em razão dessas querelas com a fenomenologia e com a medicina, fosse questionado na comunidade científica, deixando a psicanálise na fronteira epistêmica da ciência e da filosofia. Afinal, a psicanálise é uma ciência? sim, há cientificidade na psicanálise. No entanto, uma ciência  que se edifica na linguística e no estudo dos mitos e dos textos literários. Uma ciência portanto distante, muito distante, das ciências de seu tempo, as ciências duras (ditas da natureza). Freud ao trabalhar os mitos de Édipo, de Narciso, de Eros, de Hamlet, de Lady Macbeth, entre tantos personagens da literatura e do teatro, fez deles, a fonte do  saber da psicanálise, validado da clínica. Para Freud, os escritores estão à frente dos cientistas no conhecimento da alma ou da psique - queixou-se contudo, que mesmo detentores desse conhecimento, alguns escritores viam a psicanálise com ambiguidade. De fato, são inúmeros os escritores que trataram, e ainda tratam, com indiferença a teoria freudiana - suponho que temem a desconstrução de suas obras com a especulação psicanalítica. O próprio Jensen, apesar de elogiar o trabalho interpretativo do seu livro, manteve-se distante e, eventualmente, arredio às incursões freudianas. O biógrafo Peter Gay, entende que  o novelista, havia conhecido previamente, mesmo negando categoricamente, “A Interpretação dos Sonhos”. A novela, contudo, segue, com enorme coincidência,  o roteiro da clínica psicanalítica, do sintoma em direção a cura.


Marcos Creder

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